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Maternidade e Universidade

08.02.2021

Antes de mim vieram outras...

Kamila Eulalio Abreu

“Optei (não) conscientemente por tornar-me uma intelectual pois era esse o trabalho que me permitia entender minha realidade e o mundo em volta, encarar e compreender o concreto” (Hooks, 1995)

Antes de mim vieram outras e por elas não irei me anular. Essa vai ser a frase que você mais vai ouvir neste texto. Estou avisando porque parece-me que no Brasil, quiçá no mundo, precisamos repetir diversas vezes a mesma coisa para que sejamos escutadas. 

Vou começar a contar uma história para vocês: minha vó Jurema da Silva Raimundo enquanto solteira, não pode estudar. Seu sonho era ser professora, mas estudou apenas até a quarta série do antigo primário. Sempre teve que lutar, como toda mulher pobre, desde nova e com uma mãe que forçava ela cuidar de casa, cuidar dos mais de 10 irmãos e irmãs. Minha avó só podia pegar no caderno da escola após realizar todas as tarefas de casa, coisa que só acontecia lá para às 11 horas da noite. Nem preciso dizer que minha vó é semianalfabeta, mas nunca vi ninguém fazer contas primárias tão rápido como ela. Quando minha avó pensou que iria descansar um pouco, no momento em que casou, foi surpreendida por um marido abusivo e alcoólatra. Minha avó teve nove filhos - destes nove - sete nasceram com vida. Dentre elas minha mãe. Pularei a história de vida da minha mãe, mas quem interessar tem um texto sobre sua vida no livro Maternidades Plurais, como mãe homenageada.

Minha mãe queria ser enfermeira. Sempre cuidou dos idosos da sua família e desde nova trabalhou para fora como cuidadora, é incrível a sua paciência em cuidar de pessoas doentes e o cuidado que tem com essas pessoas. Mas, minha mãe, assim como minha avó teve que se anular. Ela precisava trabalhar, porque me teve com 19 anos (mesma idade que eu tinha quando nasceu minha filha), ela precisava trabalhar para me sustentar e para me dar uma vida minimamente digna. 

É por mulheres como elas que penso em como a vida pode ser injusta, como o sistema é escroto e só acaba por dilacerar os sonhos de mulheres da base. 

É por mulheres como elas ainda se faz necessário um movimento feminista de base e que inclua essas mulheres e seus projetos de vida como sendo projetos do movimento. 

É por mulheres como elas que necessitamos de um movimento que enxerga as necessidades das mulheres das classes populares, das mulheres negras, das mulheres negras das classes populares, das mulheres indígenas, das mulheres deficientes, das mulheres Trans e de outras milhares de Interseccionalidades.

Eu vejo um feminino que abraça essas mulheres com minha avó. Eu vejo feminismo que abraça essas mulheres como minha mãe. E a luta pela democratização da educação perpassa não só o fato de eu ter entrado para a faculdade com 18. Sim, passa o fato de que minha mãe ainda não pode entrar. E que minha avó não chegou nem perto e dada sua idade dá essa luta está perdida. Hoje faltam 2 dias para o Enem. Hoje faltam 2 dias para o primeiro Enem da vida da minha mãe. E ela não vai mais se anular. 

Toda vez que eu penso em Ensino Superior, eu lembro de quantas mulheres eu tentei entrevistar para minha monografia e acabaram abandonando a Universidade. Lembro de quantas vezes já me perguntaram porque eu não ficava em casa com Helena. Lembro das vezes em que me perguntaram com quem estava a Helena enquanto eu estava estudando. E como essas violências simbólicas me fizeram quase desistir de ser uma mulher graduada. Isso só me lembra o quanto a sociedade ainda acredita piamente que a mulher deve ficar em casa, que a mulher deve se anular a partir do momento que ela vira mãe. 

Ser uma intelectual negra não é uma das tarefas mais fáceis, talvez seja por isso que só descobri que era no penúltimo período da faculdade. Já dizia Bell Hooks: “A decisão de trilhar conscientemente um caminho intelectual foi sempre uma opção excepcional e difícil. Para muitos de nós tem parecido mais um chamado do que uma escolha vocacional. Somos impelidos, até mesmo empurrados para o trabalho intelectual por forças mais poderosas que a vontade individual”(Hooks, 1995).  

Concordo com Hooks, você se descobre intelectual quando se é negra dentro de uma academia racista e sexista. Eu não fiz essa escolha conscientemente, a única escolha que fiz consciente foi de não abandonar meu curso depois que minha filha nasceu. Ainda assim, estou aqui escrevendo para vocês hoje e pensando em quantas vezes pensei que não conseguiria ser uma mãe negra pesquisadora e intelectual. Em quantas vezes pensei em não ir para aula, porque estava cansada demais para levantar da cama às 5h. 

Hoje, ao escrever minha dissertação, penso no caminho que trilhei até aqui e como consegui não me anular. Já deu para perceber que a palavra-chave desse texto é essa, né? Acho que quis fazer igual a Cartola na música e fui em busca de me encontrar. 

E é aquilo, né? Eu não irei mais me anular. Minha mãe não irá se anular e se depender de mim ela irá conquistar o mundo. Eu acredito no poder das palavras e que elas podem alcançar lugares que muitas vezes a gente nem imagina, que o recado de não devemos nos anular não é só para minha mãe e sim para todas as mães. 

Então, é por essas mulheres que eu escrevo. É por essas mulheres que eu luto e é para essas mulheres que eu vou continuar a minha jornada. Porque não é justo a sociedade falar que a gente deve ou não fazer. 

Porque não é justo nós ainda precisamos justificar os nossos estudos em nossos filhos para sermos validas. Nós estamos estudando para dar uma vida melhor para os nossos filhos, e isso não é mentira. Mas, para além disso, nós estudamos para ter uma vida melhor e estudamos por nós mesmas.

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