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Lente Feminista

16.01.2021

Machismo nosso de cada dia: 

Um ensaio sobre as misoginias reais e naturalizadas escondidas sob a “saia” patriarcal.

Ivana Moura

“Todo conhecimento se origina na percepção do mundo objetivo externo através dos órgãos dos sentidos físicos do homem. Aquele que nega tal percepção, nega a experiência direta ou nega a participação pessoal na prática que muda a realidade e não é um materialista.” Mao Tsetung, Da Prática, 1937.

Imagine o seguinte: ao final de um dia qualquer, você decide dar uma olhada no que está acontecendo nas redes sociais, quando surge, na sua timeline, a postagem de um conhecido humorista, branco, em que o mesmo, em uma imagem bem produzida, “traveste-se” de homem negro, (Black face). A imagem em questão narra uma ação policial, uma “dura”, como a gente chama por aqui, a qual o “personagem” está sendo submetido, e na legenda da postagem dessa imagem uma descrição debochada dizendo:

“Tudo na vida passa... Eu continuo passando! Não é fácil ser negro trabalhador e favelado.”

Imaginou?                                                         .

Com certeza, nesse momento, a sua veia antirracista gritou:

  • Racista!

  • Isso é Criminoso!

  • Um homem branco não pode zombar das opressões e violências que os negros sofrem!

RACISTAS NÃO PASSARÃO!

Sem parcimônia, podemos afirmar que essa seria uma reação muito justa. Entendemos, com clareza, a violência na imagem, violência diária que pessoas negras passam. Violência do cerceamento de ir e vir. Violência supremacista branca.

Eu imagino também que, ao serem confrontados com tal agressão, militantes e representantes do movimento negro viriam a público repudiar a “brincadeira” criminosa. Entre tantas outras ações cabíveis nessa situação, pediram uma reparação pública por parte do humorista. E isso seria o correto a se fazer, combater o racismo com vigor e não aceitar que tal ação caia no campo da normalidade.

Em 1964, Malcolm X discorria sobre a necessidade de abordar e analisar a raiz de opressão, com a intenção questionar as violências sofridas pelos negros, para que as pessoas pudessem, dessa forma, entender o que estavam enfrentado.

”Se você der a uma pessoa uma compreensão completa do que as confronta e das causas básicas que as produzem, elas criarão seu próprio programa: e quando as pessoas criam um programa, o resultado é a ação”. Malcolm X

Toda essa consciência e vigor revolucionário só são possíveis porque a comunidade negra e seus movimentos se apropriaram da sua história, passando a compreender suas opressões e com isso, puderam elencar seus opressores e todos os mecanismos de violência utilizados por eles. Essa consciência e apropriação foram primordiais para algumas conquistas sociais e legais, entre as quais, cito a criminalização do racismo.

 

É fato que a situação acima ilustrada por mim é hipotética, apenas um exercício de imaginação, para que possamos entender melhor como está a nossa compreensão quando o assunto é violência contra a mulher, por que não conseguimos  ver com a mesma clareza com a qual vemos atos racistas  e o que podemos aprender com o movimento negro.

Machismo e Misoginia naturalizados.
 

Em 29 de setembro, o professor, humorista e Youtuber Guilherme Terrire, mais conhecido por sua icônica personagem Drag Queen Rita Von Hunty, do canal Tempero Drag, fez uma postagem “humorística” em uma de suas redes sociais. Na imagem, Rita, apresentada em um visual que busca resgatar a feminilidade dos anos pós Guerra, posa com ferro na mão e passando roupa, em uma referência ao trabalho doméstico. A imagem veio acompanhada de uma legenda, que buscava dar um tom de humor à ação e dizia: “Na vida tudo passa... Eu continuo passando! Não é fácil ser mãe de 16 crianças e do lar!”.  

Imagem extraída da postagem.

Eu não sou uma seguidora do canal Tempero Drag, mas já vi alguns vídeos compartilhados que surgiram na minha timeline com  a performance da Drag Queen. Os vídeos apresentados pela personagem Rita Von Hunty abordam com “humor” temas tensos, como homofobia, consciência de classe, política e discurso de ódio.
 

Guilherme Terreri é formado em Artes cênicas pela UNIRIO e em Letras pela USP, também estudou História da Arte, Antropologia da Cultura e tradução de textos medievais e com esse aporte acadêmico, sua personagem passeia sobre citações de grandes pensadores, oferecendo um tipo de “mini aula” sobre sociologia, antropologia e política. Isso exemplifica o quanto Guilherme Terrire compreende, exatamente, o que é opressão e o que ela significa para as diversas classes de oprimidos.
 

Rita Von Hunty é uma personagem que traz à tona uma das opressões mais rentáveis para o capital, e uma das mais alienantes para aquelas que nascem no “outro sexo”, o padrão de beleza estética. Com visual vintage pós-guerra, Rita nos lembra, quase coercitivamente, uma época em que a beleza se tornou tema importante para toda fêmea, onde um padrão estético debilitava mulheres à subserviência da feminilidade. 
 

Esse visual era imposto pela sociedade a todas, incluindo as mães, que precisavam desprender tempo para ter um visual perfeitamente “cuidado” em meio às tarefas rotineiras de “mãe exemplar”, dona de casa dedicada e esposa devotada.
 

Naquele período, o sucesso feminino era voltado apenas ao casamento. Uma mulher "bem sucedida" era uma mulher casada e com filhos– mas essa não é a pior parte dessa história...

 

Violência de gênero:
 

Como mulher, mãe e feminista não pude ignorar toda a problemática daquela postagem “humorística”, e aqui apresento alguns apontamentos fundamentais para elucidarmos o tamanho da violência disfarçada de “crítica social humorada”.
 

Curiosa, “escavei” um pouco mais as complicações daquela imagem e daquela legenda, e me surpreendi com a massa de comentários que ignoravam totalmente a violência e o deboche com temas tão caros a nós mulheres, "a exploração doméstica e a maternidade compulsória" -  e pensei -  será que essas pessoas não estão vendo o mesmo que eu? Por quê?
 

Lendo, perplexa, os comentários feitos pelos seguidores, me deparei com um relato de dor sobre opressão de gênero.

 

- Nossa, minha avó teve 16 filhos... Ela não teve escolha -

 

O que se deu no decorrer desse comentário foi uma série de respostas com relatos de mulheres, mães e avós, que tiveram suas vidas roubadas pela exploração doméstica e maternidade. 

Há alguns meses, li um estudo feito no Brasil, pela CEDECA-CE (Centro de Defesa da Criança e Adolescente do Estado do Ceará), que relacionava a condição de gênero diante do cenário educacional. O levantamento apresentou um dado que me chamou a atenção - a evasão escolar de mulheres é maior que a dos homens em 29 vezes.

 

O motivo?

Meninas abandonam a escola para cuidar da casa ou de alguém. Meninas tornam-se mães antes de terminarem seus estudos.

O estudo também trazia a informação de que essa diferença de gênero pode ser identificada ainda na fase infantil. No Nordeste do Brasil, meninas trabalham em afazeres domésticos oito horas por dia. Para além da exploração doméstica, o estudo aponta uma “epidemia” de casamentos infantis - meninas sendo exploradas e engravidando compulsoriamente. A vida para essas mulheres e crianças não passa, subsiste.

 

Minha avó – 16 filhos – sem escolha.

  

O sistema patriarcal sempre foi uma máquina de moer a humanidade da mulher, e ele se molda, se moderniza e se "pós moderniza" com o propósito de manter intactos os papéis de gênero e seu "status quo". E quando um homem branco, privilegiado por sua condição, traveste-se de mulher para revalidar a naturalização de nossas opressões - das dores e da vida que abandonamos, muitas as vezes, por causa da maternidade - através de um “tempero satírico”, ele não está subvertendo nenhuma ordem, ele está apenas fetichizando sobre nossas violências.  

Ainda existe muita dificuldade para que mulheres consigam identificar essas armadilhas de apagamento da nossa condição humana. Fomos ensinadas a aceitar a regra dos homens como uma realidade absoluta, e isso foi moldando a forma com a qual olhamos para nós mesmas nesse mundo masculino. Enquanto o homem é livre para se desenvolver, estudar, socializar, fazer ciência, explorar possibilidades, nós mulheres somos empurradas para a maternidade, para os serviços domésticos, para a escravidão da busca pela estética perfeita…

 

"Nossas opressões não são motivo de piada".

 

Devemos seguir os passos do movimento negro, que nos ensinou a identificar atos racistas, e começar a exercitar o nosso olhar e energia para identificar atos machistas. Afinal, se esse movimento de apropriação da nossa condição material e humana não vier de nossa própria busca por libertação, de quem virá?

 

Texto para a coluna LENTE FEMINISTA, por Ivana.

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