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Lente Feminista

16.02.2021

“NA HORA DE FAZER NÃO GRITOU, NÉ?!”

Ivana Moura

Não lembro quando foi a primeira vez que ouvi a frase “ser mãe é padecer no paraíso", mas me recordo que desde a primeira infância, assim como todas as mulheres que conheço, fui estimulada à maternidade. Uma mulher só é completa quando se torna mãe, foi o que me disseram repetidas vezes.

Quando se é criança e mulher, e lhe presenteiam com belas bonecas bebês que choram, mamam e falam mamãe - entre outras especificidades do cuidado com o bebê - não te contam que nesse "paraíso" há mais sofrimento, solidão, exclusão, violência e dor do que você, em sã consciência, poderia imaginar e que tudo isso é naturalizado ao “ser mãe”.

A imagem “sacra” de maternidade se desfaz assim que você tem de fato um ser humano dentro do ventre. Para algumas mulheres o primeiro contato com violência que envolve a maternidade é explícita, clara e direta, para outras é velada, mas para todas têm um mesmo ponto em comum, o momento do parto.

 

Não vou me debruçar nesse momento sobre a relação direta que a maternidade compulsória tem com esse tema- porque tem - sobre ela falarei em outro texto, aqui quero falar sobre como a sociedade ainda aceita que mulheres sejam violentadas em um momento tão particularmente sensível e único de suas vidas.

 

Segundo a Bíblia a dor do parto é um castigo designado a Eva - que pecadora e insubmissa a Deus - e a todas as suas descendentes; “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto, darás à luz com dores” ( Gênesis, 3:16), e como sabemos a religião, o patriarcado e o capitalismo trabalham juntos - e bem - quando o assunto é oprimir, castigar e dominar mulher. Assim vivemos e sobrevivemos imersas a um conceito histórico-social e cultural que abraça e justifica, por diversas narrativas, a ideia violenta de que mulheres não têm o direito de “reclamar” de suas dores na hora do parto ( castigo divino) e que elas mesmas não são capazes de protagonizar esse momento (domínio patriarcal e da ciência do homem sobre o corpo da mulher). A algumas é “dada a escolha”de não sentir essa dor, “optando “ assim por uma parto cesário, como se isso também não fosse uma forma de violência. 

O árduo trabalho em amedrontar mulheres em relação às dores do parto para que posteriormente possam oferecer a essas futuras mães aterrorizadas a “escolha” por um procedimento cirúrgico totalmente desnecessário e contra indicado - salvo os casos onde a cirurgia cesária é imprescindível para a vida da mãe e bebê -  é muito bem sucedido e faz o Brasil encabeçar as estatísticas de partos cesáreos sem qualquer indicação médica plausível .

 

Ai você me pergunta:

Mas Ivana, o que o machismo e a misoginia tem haver com isso?

e eu lhes respondo: TUDO!

 

Do parto cesáreo sem prescrição médica, ou com prescrições rasas como “ o cordão umbilical está em 'enrolado' no pescoço do bebê", ao extremo da agressão onde um médico obstetra rasga com as próprias mãos o períneo de uma mulher durante o parto apenas pelo fato da mesma ter pedido que não fizessem episiotomia, A  base fundamental da violência obstétrica está na concepção patriarcal de que ódio contra a mulher e a inevitável necessidade de controle de seus corpos e algo que deve ser totalmente aceitável, naturalizado e institucionalizado.

 

“ O médico dizer que me ‘me deixou virgenzinha de novo’ pro marido na consulta pós parto do ‘primeiro”.E ter cortado mesmo que eu tenha dito antes não cortar e perguntando depois na sutura se queríamos  P, M ou G”.

 

“ se você não parar de gritar eu vou te deixar sofrendo aqui a noite toda, e na hora das contrações ele vinha com semblante de deboche: “não está doendo nada.”

                                                    Relatos extraídos do Dossiê crise, feminismo e comunicação (UFRJ)

 

Por volta de uma semana atrás li uma entrevista publicada na revista RADIS ( FIOCRUZ) onde a médica e professora Melania Amorim, elabora como a relação de  violência obstétrica e a violência de gênero está intimamente ligada. Melania que leciona Ginecologia e obstetrícia na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) discorre sobre a raiz da prática da medicina, que é essencialmente machista e misógina e diz: “ Há um viés de gênero na prática e na própria construção do campo de conhecimento. o saber médico é constituído em um modelo patriarcal que vê o corpo feminino como essencialmente defectivo.”

 Ainda nessa entrevista a professora Melania diz que há, de fato,  “plus” na violência obstétrica quando consideramos o recorte de classe e de raça. Mulheres negras, pobres, solteiras e lésbicas costumam sofrer os piores e mais agressivos casos de violência obstétrica.

 

Em Maio de 2019 o Ministério da Saúde aboliu o termo violência obstétrica. O texto do despacho defende-se dizendo: "Violência obstétrica tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-oarto-puerpério”. Essa decisão veio acompanhada e justificada pelo parecer 32/2018 apresentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) que afirma: “ A expressão violência obstétrica é uma agressão contra a medicina e especialidade de ginecologia e obstetrícia, contrariando conhecimentos científicos consagrados, reduzindo a segurança e a eficiência de uma boa prática assistencial e ética”.

Como já havia nos alertado a médica e professora Melania Amorim, a prática obstétrica e ginecologia é fundamentalmente patriarcal, e assim sendo, misogina, sexista e machista.


 

“ Quando o médico chegou na sala de parto ele falou: Então é você a escandalosa do hospital?, para de ser fresca que nem está doendo, se você não calar a sua boca você vai parir sozinha”.

 

“Elas gritavam: na hora de dar você nem gostou? Já tá no sexto filho é porque gostou da dor do parto!”

  Relatos extraídos do Dossiê crise, feminismo e comunicação (UFRJ)


 

Quando eu era criança e me davam belas bonecas bebês para que eu,  ludicamente, fosse levada a ideia de que maternidade era a minha única opção como mulher,  e me falavam do pecado original cometido por Eva e Adão, eu não tinha a menor ideia do que significava “padecer no paraíso". Hoje eu sei!

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