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Desconstruindo a Maternidade

10.08.2021

O que é ser mãe?

Cecília Santos

Você consegue definir com clareza o que é ser mãe? Afinal, quem seria a mãe? O que ela faz? O que a caracteriza? Mãe é quem gera? Mas e as doadoras de óvulo? Mãe é quem gesta e pare? Mas e as mulheres que alugam seus úteros? E as mães adotivas? Mãe é quem cuida? E as mulheres que precisam terceirizar os cuidados dos filhos quase integralmente? E as avós, as tias, as vizinhas, as babás, que muitas vezes são as que criam verdadeiramente a criança? São as mães? 

 

Parece mais difícil do que parece, não é? O que determina afinal, quem é a mãe?

 

Vamos por partes. Em primeiro lugar, é preciso o entendimento de que esse embaçamento da categoria “mãe” é relativamente recente. Tradicionalmente, o papel da maternidade era diretamente ligado às funções somente possíveis por conta da natureza reprodutiva feminina. A “mãe” era aquela que “dava a luz” e as demais tarefas necessárias para a criação de uma criança que hoje são necessariamente atribuídas ao ato de maternar eram organizadas e distribuídas de diferentes maneiras a depender da época, da sociedade e da cultura. 

 

A ideia de “família” como conhecemos, pai, mãe e filhos, vivendo juntos e conectados por laços afetivos, em um núcleo mais ou menos independente da sua comunidade - e em muitos casos completamente isolados de um sentido de comunidade -  é uma coisa absolutamente contemporânea. Casamentos tradicionalmente, sempre foram sobre negócios, transmissão de herança, aumento e preservação de patrimônio. Mulheres tradicionalmente sempre foram tidas moedas de troca, eram vendidas, trocadas, dadas em uniões com parceiros a sua revelia, onde iam cumprir seu destino irrevogável de reprodutora.

 

Os conceitos e práticas que hoje entendemos como sendo parte da “maternidade” foram construídos principalmente, a partir do século XVII, quando falamos de Europa e de Brasil, com organização dos Estados modernos e a instalação de uma ordem econômica burguesa. Na Idade Média, e mesmo antes, a maternidade como conhecemos não existia e mais, sequer o conceito de infância era definido. Crianças geralmente permaneciam sob a tutela da família original até mais ou menos os 7 anos e depois eram entregues para outras famílias para serem treinados como aprendizes. Já no início da puberdade as meninas eram dadas ou vendidas em casamento e os meninos se tornavam trabalhadores braçais, para casarem-se logo depois, e povoar a terra de filhos. Dessa forma crianças eram muito mais vistas como mini-adultos que qualquer outra coisa, a mortalidade infantil era altíssima e a relação entre adultos e crianças, assim como a relação entre mães e filhos era bem diferente do que conhecemos hoje. Não que as pessoas não se “amassem”, mas o “amor” não era exatamente a tônica da organização dos relacionamentos.

 

A partir do século XVIII, mudanças importantes começaram a acontecer,  mudanças que foram reorganizando a sociedade num modelo muito parecido com o que temos atualmente. Das mais significativas podemos destacar a industrialização, a diminuição dos núcleos familiares e sua progressiva mudança para as recém-criadas cidades, o fortalecimento da ideia de vida privada e o afastamento de  um modo de vida mais compartilhado e comunitário. Isso reconfigura as relações domésticas e principalmente ressignifica o papel da mulher dentro do núcleo familiar. Agora não tínhamos mais homens e mulheres trabalhando juntos na lavoura, ou tomando conta de pequenos negócios, mas o homem que saía para trabalhar na fábrica, mulheres que eram proibidas de participar ativamente da vida pública, e filhos que não eram mais entregues para serem aprendizes. A mulher, isolada, passa a assumir um papel estratégico para a manutenção do ambiente doméstico e criação dos filhos. Junto a isso, com a necessidade de sobrevivência das crianças para a manutenção da organização econômica capitalista que é sustentada por uma coisa chamada exército de reserva, a função das mulheres enquanto “mães” e “esposas” passou a ser reorganizada.

 

Dessa forma, para garantir a sobrevida das crianças, intervenções diretas na organização das famílias começaram a ser realizadas, com estratégias diferentes a depender da classe social, mas sempre com o mesmo objetivo. O Estado passou a estar cada vez mais presente no controle do indivíduo através da família e a família nuclear ali tornava-se então uma das principais instituições a serviço do Estado patriarcal.

 

A mulher neste momento passa a ter um outro papel dentro da lógica de manutenção capitalista, onde o seu trabalho doméstico não remunerado é um pilar essencial para garantir que os homens possam estar completamente livres para servir ao capital e seu trabalho de cuidado das crianças é fundamental para garantir mão-de-obra produtiva. 

 

Naquele momento nasce a “mãe” moderna, muito parecida com o que conhecemos hoje, cercada de dispositivos legais que a impediam de fato de fugir dessa condição de mãe e esposa (até bem pouco tempo mulheres não podiam divorciar-se, contraceptivos em larga escala também são relativamente recentes, mulheres não podiam trabalhar fora e inúmeros países ainda proíbem o aborto, por exemplo), e principalmente cercada de um forte aporte cultural e simbólico (e aqui plenamente aditivado por uma era de cultura de massa) que ajudaram a criar todo um imaginário simbólico que condicionou a psiquê de mulheres, desde meninas, a cumprir esse papel social de mãe e esposa. Quanto mais responsabilidades foram atribuídas às mulheres, maior a valorização das idéias de sacrifício, dedicação, indispensabilidade. Tudo isso amparado por um discurso institucional, médico, filosófico e religioso de que isso fazia parte da “natureza” da mulher. 

 

A partir daquele momento, a “mãe” não é só aquela que pare, mas também a que a que educa, a que socializa, a que educa, e mais uma série de outras atribuições, atreladas a ideia de amparo e subserviência. As tarefas de cuidado de crianças, que poderiam ser exercidas por qualquer um, passaram a ser incorporadas no campo semântico da “maternagem” e indissociavelmente atreladas à figura da mulher. E mais, naturalizadas como sendo inerentemente femininas. 

 

Portanto, a ideia de maternidade como conhecemos hoje foi construída em cima das demandas do patriarcado de permanecer explorando mulheres reprodutivamente e das demandas do capitalismo de garantir mão-de-obra. E mesmo a variável “amor” - que hoje nos é tão cara - foi convenientemente inserida e manipulada para garantir a compulsoriedade dessa tarefa para mulheres. O “amor materno”, tal como é articulado discursivamente, é mais uma armadilha para manter mulheres cativas e é mais romantizado e fortalecido quanto mais possibilidades civis de “escolha” para não casar e parir foram surgindo.

 

A maternidade foi definitivamente desassociada do seu caráter biológico e atrelada a um ato de “amor”, “devoção”, “doação”, “divindade”. Foi cercada de elementos subjetivos que a significasse. Se antes havia um marcador específico, material, objetivo para definir o que era uma mãe, e quem era uma mãe, agora essa categoria é completamente borrada. E que fica mais complexo ainda se considerarmos as tecnologias reprodutivas: conceber, gestar/parir, e criar são tarefas interdependentes mas não necessariamente conectadas. Exemplo: uma criança que nasce de fertilização in vitro de doadores anônimos, na barriga de aluguel de uma terceira pessoa, criada por um casal de homens. Quem é a “mãe”? É a doadora do óvulo? É a mulher que gestou? Ela não tem “mãe”, apenas pais? 

 

O que é ser mãe? O que ela faz? O que a caracteriza?

 

Eu respondo. Em um mundo patriarcal, onde o movimento de libertação de mulheres vai cavando pouco a pouco algumas vitórias, onde mulheres não são mais obrigadas a casarem-se, onde é possível divorciar-se, onde há uma luta constante pela revisão dos papéis sexuais, onde as tecnologias de controle reprodutivo vão se tornando mais acessíveis, todas foram tornadas “mães”, apenas por terem potencial gestante, por serem quem são, mulheres.

 

Esta é a resposta do patriarcado às conquistas das mulheres. Para nos manter patinando no mesmo lugar. Isso porque a maternidade sempre teve caráter compulsório para a mulher, seja antes quando era obrigada a casar e a ter filhos, seja agora quando ela é enfiada nesse conceito expandido de maternidade. 

 

A MATERNIDADE é um sistema compulsório, simbólico e cultural que é estruturante e pilar fundante da dominação patriarcal, onde mulheres são doutrinadas e submetidas a realizar todo o trabalho de gestação e cuidado de novas pessoas para o funcionamento do mundo, e mesmo que não gestem, são elas os seres inseridos necessariamente na lógica do cuidado e manutenção da vida dos outros seres.

 

Toda e qualquer mulher é “mãe”, não importa se ela teve, tem ou terá filhos, porque uma vez potenciais gestantes todas são treinadas para ocupar uma função em algum ponto da cadeia de trabalho reprodutivo, se necessário. Todas as mulheres são socializadas para a maternidade, para a maternagem e para o cuidado, desde meninas, a despeito de desejarem concretizar seu potencial reprodutivo. E é por isso também que a categoria “mãe” hoje é PROPOSITALMENTE confusa porque ela é feita para abarcar toda e qualquer mulher, a qualquer momento. E quanto mais tarefas dessa linha reprodutiva essa mulher acumula mais consolidada está a função de “mãe” para ela. Uma mulher que gestou, pariu, amamentou, cria seus filhos é aquela que sente todo o peso do pé do patriarcado no pescoço. É a mãe concretizada. Mas aquela que apenas gestou e pariu também é mãe, ou aquela que adotou, ou aquela que tem a tutela. E para uma mulher “sentir-se” mãe não é mais necessário uma realidade material, objetiva. Basta “amar”. E por isso mulheres sentem-se autorizadas a ser mãe de qualquer coisa, inclusive plantas e pets.

 

“Mãe” acaba sendo, hoje, para o patriarcado, toda mulher que é diretamente envolvida e responsabilizada em alguma etapa do trabalho reprodutivo e de cuidado, seja qual for. E para mulheres, “aquela que ama”. E manter essa categoria tão ampla, carente de delimitação objetiva, é estratégica para ocultar a grande carga de trabalho que está embutida no escopo do que hoje chamamos maternidade e impede que o grupo que realiza efetivamente essa tarefa lute por DIREITOS. 

 

Para discutir licença-parental, apoio puerperal, apoio à amamentação, denunciar a dupla/tripla jornada, discutir divisão de tarefas de cuidado, falar sobre exclusão dos espaços públicos, sobre discriminação no mercado de trabalho, sobre precarização, sobre pobreza, sobre abandono parental, sobre aborto, sobre políticas de contracepção, sobre violência sexual, sobre casamento, sobre exploração de útero por aluguel, sobre divisão de bens, sobre educação e proteção de crianças, sobre inúmeros temas que são problemas de mulheres envolvidas em trabalho reprodutivo, precisamos delimitar seu sujeito político: a MÃE.  E portanto precisamos pensar desapaixonadamente sobre a tarefa reprodutiva, sobre sua importância para a manutenção da espécie e sobre que papel homens e mulheres precisam exercer nisso.

É preciso olhar o tema para além das nossas experiências subjetivas, porque é impossível determinar a legitimidade dos nossos desejos em uma sociedade que determina nossos afetos através de uma socialização absolutamente rígida e eficiente em nos adestrar em um dado papel social.

 

E essa é uma tarefa hercúlea porque o controle da reprodução da espécie é o motivo da dominação dos homens sobre as mulheres. A disputa sobre as capacidades reprodutivas femininas são o princípio e o fim da instauração do patriarcado. O objetivo final de um movimento de libertação de mulheres é a retomada de  sua autonomia corporal e a possibilidade de determinar seu papel na produção de novos seres humanos para o planeta. Em uma sociedade livre não precisaríamos de “mães” ou “pais” da maneira que conhecemos pois crianças não seriam propriedade de uma família, mas pessoas em formação, de responsabilidade de toda uma sociedade comprometida, não com a dominação de metade dos seus habitantes, mas com o bem-estar da totalidade deles.

       

 

                                         

Referências

ARIÊS, Philippe. História Social da Criança e da Família. LTC,  Rio de Janeiro,1981. 

 

LERDA, Gerda . A criação do patriarcado: História da opressão das mulheres pelos homens. Cultrix, São Paulo, 2019. 

 

FRIEDRICH, Engels. A origem da familia, do Estado e da propriedade privada. Boitempo, São Paulo, 2019.  

 

PATEMAN, Carole. Contrato sexual. Paz e Terra, 3°edição, São Paulo, 2008.
 

MOURA, Solange Maria; ARAUJO, Maria Fátima. A maternidade na história e a história dos cuidados maternos. Revista Psicologia, Ciência e profissão, São Paulo, v.4, n.21, p.44-55, 2004.

Cecília Santos

Colunista
Rio de Janeiro - Brasil

Cecilia Santos, a Cila, é escritora, mãe, feminista e criadora do Site Militancia Materna.  

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