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Desconstruindo a Maternidade

10.10.2021

Maternidade: uma escolha impossível

Cecilia Santos

É possível falar em maternidade compulsória ainda hoje? Embora o número de casos ainda seja expressivo, práticas como casamento infantil e casamento forçado são cada vez mais combatidos, existe uma ampla oferta de métodos anticoncepcionais, há aborto legalizado em muitos países, mulheres hoje podem se divorciar. É cada vez mais popular a ideia de “independência” e “empoderamento” feminino. É inegável que uma série de medidas progressistas operam hoje para que mulheres efetivamente possam “escolher” se querem ou não ser mães, e uma vez tendo escolhido, quando serão. Um dado evidente disso é que em muitos países a taxa de natalidade caiu bruscamente e que hoje mulheres possuem cada vez menos filhos, comparado a mulheres de poucas décadas atrás.

 

No entanto, para responder sobre o fim da compulsoriedade, é preciso observar atentamente como a sociedade se organiza e se reorganiza em torno do tema da maternidade, desde sempre. Sim, é verdade que hoje a margem de manobra da maioria das mulheres é muito maior. No entanto, se antes os mecanismos de coerção eram mais objetivos (eram obrigadas a se casar), agora há mecanismos mais sutis, mas tão poderosos quanto que  fazem com que a maternidade continue a ser um destino mais ou menos irrevogável para mulheres.

 

Em primeiro lugar é preciso destacar que o principal mecanismo de coerção para a maternidade que as mulheres sofrem hoje, é o sócio-cultural. Se antes a cultura tinha o efeito de normalizar e apaziguar ânimos para uma dado estilo de vida que era inevitável, hoje a cultura tem uma forte e importante função de propaganda desse estilo de vida, buscando convencer mulheres, desde meninas, num bombardeamento massivo, de que ser mãe é a melhor coisa que poderia acontecer com ela na vida. Então mulheres são expostas a uma intensa carga de desinformação sobre a realidade da maternidade, assim como a informações falsas e extremamente romantizadas.

 

A romantização constrói uma narrativa sobre algo, escondendo seus aspectos opressivos, e idealizando e superdimensionando aspectos positivos. Esta é uma estratégia muito astuta dentro das estruturas de opressão para criar amarras psicológicas que garantem que as pessoas submetam-se a determinados papéis sociais e naturalizem situações onde são imensamente prejudicadas, sem dar-se conta disso. Para mulheres, a romantização da maternidade é fundamental para garantir a compulsoriedade dessa tarefa. A despeito dos dispositivos mais diretos e objetivos (como a dificuldade de garantir a contracepção ou a impossibilidade de interromper a gravidez em muitos países), são esses gatilhos psíquicos que são construídos durante toda nossa socialização que garantem que quase toda mulher necessariamente acabe se tornando mãe em algum momento da sua vida, ou que sintam-se compelidas a maternar animais, plantas, seus companheiros, ou qualquer outra coisa que apareça no caminho.

 

Aprendemos sobre a maternidade e sobre o que é ser mãe de muitíssimas maneiras. Recebemos instruções diretas e também observamos o mundo. Vemos nossa própria mãe e a de outras pessoas, e também representações culturais, artísticas e midiáticas: teatro, livros, músicas, filmes, novelas, séries, matérias jornalísticas, e etc. É a nossa cultura — machista, a serviço dos valores do patriarcado — que oferece todo um referencial com o qual vamos organizando mentalmente todo um aparato simbólico sobre o que significa ser mãe. Sobre o que a sociedade espera de nós nesse lugar. Como devemos agir, pensar, sentir e nos comportar. Somos moldadas para a maternagem atravessadas por mitos românticos que funcionam tanto como uma isca para este lugar, quanto uma medida de controle do comportamento da mulher que materna.

 

Dessa forma crescemos conhecendo os mitos sobre a mãe sagrada, especial, guerreira, sobre como mulheres possuem um dom único para o cuidado, sobre o amor incondicional que somente filhos oferecem, sobre como essa tarefa é única e sublime e sobre como nada na vida de uma mulher é mais importante como ser mãe. Vemos como a mulher que recusa a ser mãe é execrada, em comparação a uma falsa “valorização” da mulher que realiza a maternidade. Sobre como é impedido sistematicamente a meninas e mulheres construir qualquer outro tipo de futuro que não envolva filhos. E mulheres seguem tendo todos os seus outros objetivos invalidados ou diminuídos se não tiverem executado aquilo para que foram feitas: parir. Ainda que hoje não sejamos mais “obrigadas”, por força legal, a casar e ter filhos, existem mecanismos muito poderosos de pressão sobre as mulheres até que finalmente cumpram essa profecia autorrealizável da maternidade. 

 

Os mitos que existem sobre a maternidade são a armadilha que nos atraem, nos mantém presas e condicionadas e que embaçam nossa reflexão crítica sobre nosso verdadeiro papel no patriarcado. Por isso é muito importante conhecê-los, para reconhecê-los e principalmente, combatê-los: Os mitos maternos agem assim. Criam a imagem de que a maternidade é um lugar especial, de júbilo, plenitude e amor. Cria um cenário tão idílico que torna-se atraente para mulheres, enquanto elas crescem sendo desprovidas de todas as outras possibilidades de estar no mundo, enquanto elas são massacradas pela ideia de que possuem um “dom” natural para maternar, que possuem um “relógio biológico”, que não possuem nenhum talento, ou utilidade, ou que não há nada mais importante que possam fazer que não seja tornar-se mãe. E uma vez lá, mães, estas mulheres se vêem completamente perdidas e ficam reféns desses mitos e de toda essa romantização porque tentam a todo custo fazer a lenda acontecer. E a sociedade, que opera essa narrativa para garantir que mulheres permaneçam desejosas e “sonhando” com a maternidade, reforça e reforça o discurso e pune as mães que ousam romper o pacto com a mitologia e falar sobre a realidade de exploração laboral que é a maternidade. E isso opera tão consistentemente que até o tal discurso da “maternidade real” já está sendo romantizado.

 

Homens sabem muito bem o que significa ser pai. Tanto que adiam ao máximo esse momento (quando pretendem assumir) ou simplesmente fogem. Onde está a romantização da paternidade?



 

Referências:

 

BADINTER, Elisabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2011.

 

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 

Em breve

Cecilia Santos

Colunista
Rio de Janeiro - Brasil

Cecilia Santos, a Cila, é escritora, mãe, feminista e criadora do Site Militancia Materna.  

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