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Desconstruindo a Maternidade

10.09.2021

Como nasce a mãe?

Cecilia Santos

Quando nascemos somos praticamente tábulas rasas. Embora estudos comprovem que a hereditariedade também dá sua contribuição na formação da personalidade, os fatores ambientais e culturais são determinantes. Somos seres biopsicossociais e são nossas experiências e relações com o mundo que vão estabelecer que tipo de pessoas seremos e como transitamos no mundo.

 

Dessa forma a socialização é um aspecto fundamental para entender como nos comportamos. Socialização é o processo de nos tornar sociais. É toda a preparação que recebemos (da família, da escola, das instituições em geral, da mídia) para internalizar e fazer cumprir as regras explícitas e implícitas necessárias para viver em sociedade. Nessa sociedade. Patriarcal, colonialista, capitalista. 

 

Sob o patriarcado, somos treinados para desempenhar papeis sociais que são baseados no nosso sexo, que é identificado quase sempre ainda no útero de nossas mães. Uma vez definido se somos um "menino" ou uma "menina", uma série de expectativas começam a ser traçadas e o bebê que nasce terá uma educação que será direcionada de acordo com seu sexo. E é muito óbvio - e creio que dispensa um aprofundamento aqui - que bebês meninos e bebês meninas são tratados e criados de maneira completamente diferente.

 

Meninas são socializadas para desempenhar um papel muito específico de subalternidade em relação aos homens e de subserviência na realização de todas as tarefas do trabalho reprodutivo. São ensinadas a ter um comportamento igualmente específico, de docilidade, fragilidade, submissão, auto-objetificação. São ensinadas a serem mães, esposas e serviçais sexuais. Aprendem que sua existência é validada na medida que desperta atenção (e desejo) de outros homens. Toda a subjetividade de uma menina vai sendo moldada para que ela cresça e ocupe esse lugar objetificado no estrato social e toda a sociedade se organiza para direcionar e manter a mulher nesse lugar, criando regras implícitas e explícitas e também punições para aquelas que ousam desviar-se deste destino. E a esse comportamento que é ensinado às meninas chamamos de feminilidade.

 

Meninos, por sua vez, são treinados desde criança para desempenhar um papel de dominância, especialmente sobre mulheres. Para ocuparem um lugar de predadores sexuais como prova de sua virilidade. Porque homens apenas serão valorizados à medida que se mostrarem extremamente viris, agressivos, ativos, dominantes. E aprendem que é através da prática sistemática da violência, da dominação, da exploração e da objetificação de mulheres que é possível reafirmar-se no mundo. E a esse comportamento que é ensinado aos meninos chamamos de masculinidade.

 

Os papeis sociais de sexo, também chamados de feminilidade e masculinidade são um binômio complementar. Um não existe sem o outro e um existe para reafirmar o outro. Na sociedade,  homens são os fortes, e mulheres são fracas. Homens são os corajosos, mulheres são frágeis. Homens são os racionais, mulheres são as emocionais. A mulher é o não-homem e esse entendimento é importante para compreendermos o impacto que a socialização para a maternidade tem para mulheres, porque nascer mulher ,em uma sociedade patriarcal, te condena a uma completa subtração da própria individualidade e das potencialidades da existência. Um esvaziamento, um enfraquecimento, uma aniquilação necessária para que floresça ali a ausência, que é preenchida com função materna, com a dedicação ao papel de cuidadora. Servir a um outro (que quase sempre será um homem, e em seguida filhos) aparece para a mulher como a única possibilidade de ser sujeito, de ser visibilizada socialmente.

 

Quando uma menina nasce, um dos seus primeiros brinquedos (senão o primeiro) é justamente uma boneca. Com quem vai realizar suas primeiras brincadeiras, possivelmente imitando sua própria cuidadora. Todas as pessoas em volta dessa criança vão se referir a essa boneca como “a filhinha dela”. Todas as pessoas vão se referir a essa menina como “mãe” dessa boneca. Dificilmente essa menina vai ver seu próprio pai (ou outros homens) dispensando tantos cuidados com ela quanto sua mãe (ou outras mulheres). Se ela tiver irmãos homens, verá que eles brincam com carrinhos, bolas e nunca, ou quase nunca, são referenciados como “pai” de qualquer coisa. Muito menos de uma boneca.

Mesmo que não sejam oferecidos brinquedos que são um treinamento para a vida doméstica e da maternagem, essa menina fatalmente será levada a brincar dessa maneira com outras meninas. Ela será apartada dos meninos e censurada ou rotulada de preferir brincar com eles ou com os brinquedos que costumeiramente são oferecidos a eles.

Essa menina vai crescer e nos contos de fada verá que a princesa é feliz quando se casa e tem filhos com o príncipe. Ela assistirá desenhos, novelas, filmes, e em todos eles o final feliz envolve o casamento e uma barriga gestante. Vai ver e ouvir  por aí que entre a carreira e a família a mulher deve escolher a família. Que uma mulher bem-sucedida sem marido e filhos é infeliz. Que uma mulher solteira sem filhos está perdida, carente, desesperada. Ela verá mulheres bem sucedidas respondendo a perguntas sobre como conciliam carreira e maternidade. Ela lerá matérias que sempre espetacularizam a maternidade e os filhos. No Dia das Mães ela terá a impressão que mulheres que possuem filhos são as pessoas mais especiais do mundo e verá mulheres brigando pela alcunha de mães de seus pets.

Ela vai ouvir que a maternidade é sagrada. Que esse é o maior e mais verdadeiro amor do mundo. Que uma mulher só está completa quando tem filhos. Verá as mulheres adultas ao seu redor engravidando e festejando em público enquanto choram suas dores, dificuldades e frustrações no privado. Verá essas mulheres serem tratadas de maneira “diferente”, “especial”, por estarem grávidas e ingenuamente passará a acreditar que ser mãe realmente sacraliza.

Ela será estimulada a super homenagear a própria mãe, por sua “bravura”, “dedicação”, “cuidado”, “carinho” e será sutilmente orientada a não se importar com os atos negligentes e omissos do pai. Ela aprenderá que “mãe é mãe”, que “ser mãe é padecer no paraíso”, que “mãe é sagrada”, que “ser mãe é um dom divino”. Verá as pessoas adultas ao seu redor criticando o tempo inteiro as “mães negligentes” e começará a acreditar que a maior virtude de uma mulher é ser uma boa mãe.

Ela vai ouvir que "não existe nada maior que o amor de uma mãe", que ela "nunca conhecerá um amor tão grande como o dos filhos", e se essa menina for especialmente negligenciada afetivamente vai começar a cultivar a ilusão de que talvez sejam mesmo os filhos e uma família a resposta para a profunda carência emocional que ela traz consigo.

Essa menina vai crescer e apesar de em toda parte ela ser bombardeada com o imaginário romântico do amor, da paixão, do casamento e da maternidade, dificilmente ela será orientada sobre sua sexualidade. Crescerá com pouca ou nenhuma informação de qualidade sobre sexo, vida sexual, relações afetivas, métodos contraceptivos, consentimento. E não, não é “todo mundo sabe disso hoje em dia” porque não se trata de saber como bebês são feitos. Se trata de conversar abertamente sobre como são os relacionamentos heterocentrados. Sobre como os homens agem e como se proteger de verdade. Sobre conhecimento concreto e domínio sobre o próprio corpo.

Talvez essa menina ultrapasse a adolescência sem engravidar porque adiou o início da sua vida sexualmente ativa, talvez porque tenha introjetado tanto pavor de ter filhos antes de “estar preparada” que seja absolutamente rigorosa com métodos anticonceptivos. Talvez por pura sorte, já que a realidade de boa parte das meninas é ser insistentemente assediada por homens adultos abusadores que dizem "ela é madura para a idade dela" em relações que quase sempre resultam em gravidezes. E se ela vai chegar na vida adulta sem filhos, bastará apenas inciar um relacionamento mais ou menos estável para que comece a ser insistentemente cobrada para que se case e tenha filhos.

E dirão a ela que ela deve apressar-se por causa do seu “relógio biológico”. E talvez tudo que ela ouviu uma vida inteira sobre o que é ser mulher esteja tão introjetado, tão profundamente marcado na psiquê que ela realmente sinta que seu "relógio biológico" está chamando. Que já está na "hora de ser mãe". Sem ter a menor ideia do que isso significa de fato. De quais os impactos um filho trará para sua vida, para os seus planos. E se ela recusar-se a esse chamado, será cobrada, e cobrada, e cobrada. E se ela afirmar que não deseja a maternidade será chantageada e ameaçada ("você vai morrer sozinha", "você é egoísta", "você está perdendo uma coisa incrível", "você vai ficar infeliz") pelo resto dos seus dias. E poucas são as que resistem, a maioria esmagadora das mulheres torna-se mãe sem a possibilidade de refletir sobre o próprio destino de fêmea. Seduzida pelas promessas de amor e devoção. Torna-se esposa, torna-se mãe. Fruto perfeito do patriarcado.

E assim, após anos de uma socialização implacável, nasce a mãe.

 

A maternidade pode ser sim (e é) um lugar de realização e felicidade subjetiva para inúmeras mulheres. Mas esse lugar também depende de inúmeras variáveis que são absolutamente específicas, individuais e particulares. Não é uma condição dada pela sociedade, garantida pelo Estado. E é muito difícil, quiçá impossível, determinar o que é um desejo legítimo pela experiência da maternagem e o que é apenas o cumprimento da profecia autorrealizável da socialização. O fato é que mulheres não são informadas (e não é estratégico ao patriarcado que sejam) de todas as implicações para sua vida em tornar-se mãe em um mundo patriarcal. Mais que isso, são iludidas por uma tremenda romantização da maternidade (que tem função justamente para garantir que mulheres não escapem a esse papel). E nenhuma mulher tem verdadeira noção de fato do que é a maternidade até tornar-se mãe.

 

 

 

Referências

 

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1985. 


LERDA, Gerda . A criação do patriarcado: História da opressão das mulheres pelos homens. Cultrix, São Paulo, 2019. 

BRAVA, Fêmea. A feminilidade como sujeição à masculinidade. Blog Feminismo com Classe. Dispónivel em: https://qgfeminista.org/a-feminilidade-como-sujeicao-a-masculinidade/

SÁNCHEZ, Tasia Aránguez . La trampa de la feminidad y las nuevas masculinidades. Tribuna Feminista, Espanha, Janeiro de 2019. Disponivel em: https://tribunafeminista.elplural.com/2019/01/la-trampa-de-la-feminidad-y-las-nuevas-masculinidades/

Em breve

Cecilia Santos

Colunista
Rio de Janeiro - Brasil

Cecilia Santos, a Cila, é escritora, mãe, feminista e criadora do Site Militancia Materna.  

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