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Cidade Materna

22.02.2021

Cidade Materna: 

Qual é o lugar das mães no espaço urbano?

Júlia Matos

O debate atual que considera a cidade sob a perspectiva de gênero levanta muitas questões para se pensar em um planejamento urbano que considere a experiência das mulheres. Uma dessas questões que devem ser levadas em consideração é o crescente fenômeno da feminização da pobreza, conceito que expõe a grande presença de mulheres entre os mais pobres. Elas representam 70% do 1,3 bilhão de pessoas que vivem em condições de pobreza absoluta no mundo. A experiência das mulheres nas cidades, considerando esse fator, esclarece uma condição determinante: a grande maioria delas são mães. Mas seria a maternidade o grande fator agravante de pobreza para as mulheres?

 

Conforme pudemos observar durante a pandemia de covid-19 iniciada em 2020, mulheres e crianças são os grupos mais afetados em cenários de crise. Não somente por conta do aumento da vulnerabilidade social da classe trabalhadora, que impacta no orçamento familiar, mas também na vitimização por violências tanto na esfera pública como na privada. O grande aumento do número de casos de violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças na pandemia, expõe essa problemática. Além disso, o Brasil foi o país onde mais morreram mulheres em decorrência da gravidez, parto e puerpério por complicações da covid-19, em todo o mundo. 

 

Sabemos que, historicamente, o trabalho não remunerado da mulher nos cuidados com os filhos, com a casa e até com o próprio companheiro, não é considerado na produção de riqueza. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as mulheres de menor renda e negras são o grupo de maior vulnerabilidade na pirâmide social brasileira, o que comprova que o racismo é uma questão indissociável da problemática de gênero, presente em todas as classes sociais. É nas mulheres de baixa renda, contudo, que se evidenciam as desigualdades de maneira mais nítida. 

 

Segundo dados do IPEA, 41% das famílias chefiadas por mulheres têm como referência uma mulher negra. Apesar da crescente chefia feminina nos domicílios brasileiros representar importantes avanços na emancipação das mulheres – em especial no que diz respeito ao direito à moradia –, na prática, esse indicador mostra que a responsabilidade da criação dos filhos continua concentrada na figura materna, enquanto a vida do genitor é pouco afetada. Existem 67 milhões de mães no Brasil, sendo 31% (20 milhões) solteiras. Esses dados mostram uma realidade comum: a facilidade que o homem tem em optar por ser ou não responsável pelo próprio filho. 

 

O descumprimento, por parte do homem, de suas responsabilidades parentais sempre foi um comportamento naturalizado na sociedade e, até mesmo, aceito. Apesar do crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho, que possibilita a elas serem provedoras de suas famílias – percebe-se que tal crescimento não corresponde a um aumento proporcional da participação dos homens na vida doméstica e no cuidado com os filhos. Ao contrário, existe uma verdadeira epidemia de abandono paterno. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, 5,5 milhões de crianças brasileiras estão sem o nome do pai na certidão de nascimento.

 

De acordo com o IBGE (2015), 83,6% das crianças brasileiras de até quatro anos de idade têm como principal responsável uma mulher, seja mãe biológica ou de criação (avó, tia, etc). Além disso, as mulheres se dedicam 73% a mais que os homens em afazeres domésticos e nos cuidados com a família, ou seja, são as principais envolvidas nos cuidados com crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência. Esses fatores fazem com que elas se tornem as principais prejudicadas pela precariedade dos equipamentos públicos, como postos de saúde, creches e escolas, além de serviços básicos, como o abastecimento de água, luz, redes de esgoto, drenagem e coleta de lixo, por exemplo. A ausência de qualidade urbanística das ruas e calçadas e as limitações do transporte público prejudica de forma mais intensa a mobilidade das mulheres, em especial, gestantes, mães que carregam seus filhos no colo ou em carrinhos de bebês, donas de casa e chefes de família, que carregam compras para abastecimento da casa e alimentação.

 

Mas por que elas devem ser grupo prioritário na execução de políticas públicas, afinal? Mulheres mães empobrecem porque não tiveram as mesmas oportunidades dos homens, casados ou solteiros, ou das mulheres solteiras sem filhos, de tempo em investir em si mesmas, em estudo e carreira. Mesmo quando inserida no mercado, a mulher mãe continua a principal responsável no cuidado com os filhos e com a família, além da manutenção da casa, o que, na prática, significa exercer duplas ou até triplas jornadas de trabalho. Assim, abolimos o mito do provedor e colocamos em evidência a divisão sexual do trabalho, que na esfera doméstica, sempre recai sobre a mulher, apesar dos avanços em busca de equidade nos últimos anos. Além de definir e hierarquizar as profissões entre trabalhos de homem e trabalhos de mulher – sendo o trabalho dos homens geralmente mais bem pagos e valorizados que o trabalho das mulheres –, a divisão sexual do trabalho invisibiliza o trabalho não remunerado que a mulher tem no âmbito doméstico. Isso significa que as mulheres mães não empobrecem porque se tornam chefes de família, porque deixaram de ter um provedor, mas sim, porque deixaram de se socializar com as regras do mercado de trabalho, já que têm que cumprir, sozinhas, o trabalho doméstico, na criação dos filhos e na manutenção da casa. A grande questão é que o fato de esses cuidados à família estarem culturalmente associados à expressão do afeto dificulta seu reconhecimento como trabalho.

 

Sabemos que o machismo existente na sociedade continua sendo um fator chave na dificuldade de acesso das mulheres à cidade. Quando aliado a esse fato, a presença de crianças, idosos, pessoas com alguma deficiência ou restrição de mobilidade, o acesso à cidade se torna um desafio. E é por isso que precisamos juntas construir uma Cidade Materna.

Por Júlia Matos @cidadematerna

Júlia Matos
Rio de Janeiro - Brasil
Colunista

Júlia Matos é carioca, Arquiteta e Urbanista formada pela UFRJ e Mestra em Projetos Complexos - Sistemas de Saúde pela UFBA. Tem experiência em arquitetura hospitalar, compatibilização de projetos, acompanhamento, avaliação e medição de obras, levantamento e reformas. É pesquisadora nas áreas de arquitetura em ambientes de saúde, humanização dos espaços de assistência ao parto e nascimento, gênero e espaço urbano, segregação sócio-espacial e planejamento urbano, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Integra o Grupo de Estudos em Arquitetura e Engenharia Hospitalar Gea-Hosp/UFBA. Atua junto à Rede pela Humanização do Parto e Nascimento/Rehuna e à Rede de Humanização do Parto e Justiça Reprodutiva da Bahia/Humaniza Parto Bahia. É idealizadora do @cidadematerna.

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