top of page

Cidade Materna

22.01.2021

Cidade materna: Como nasce uma mãe militante

Júlia Matos

O ano era 2013 e em pouco tempo descobri que para ter o meu corpo respeitado no momento do parto eu precisaria ter muito trabalho. Curtir a gravidez com bercinho e tudo mais não foi o que rolou. Claro que é um ideal que acabamos por internalizar das imagens que somos bombardeadas desde cedo: o quartinho do bebê todo decorado, mil e um acessórios. Pouco tempo depois de paridas descobrimos que tudo isso é um gasto desnecessário de dinheiro, porque cá entre nós, quem aguenta ficar indo e voltando ao quartinho do bebê 4 vezes por noite para amamentar em poltrona ou acudir um choro insaciável por calor humano? Mas isso é assunto para outro dia. A questão é que aquele todo cor-de-rosa ou azul, pra mim, não fazia sentido. Eu tinha data marcada para ir pra faca, também chamada DPP, a data provável do parto. Seja o corte por cima, a cesariana, ou o corte por baixo, a episiotomia – como muito bem nos ensina Simone Grilo Diniz, sobre o modelo de parto atual, tanto no SUS como nos planos de saúde – essa ideia me causava um verdadeiro pânico. 
 

É óbvio que tem mulheres que precisam de uma cirurgia cesariana. A medicina evoluiu e essa cirurgia pode salvar vidas. Mas é das desnecesáreas, como vêm sendo usualmente chamadas as cesarianas feitas sem qualquer indicação fundamentada em evidências científicas, que eu estou falando. Quanto às episiotomias, na época, assim como ainda é hoje, era um absurdo questionar se submeter a uma, mesmo a misoginia inscrita nessa prática sendo evidente:

“[…] as dores e a alteração morfológica foram consequências não de procedimentos pertinentes a um contexto cientificamente justificável, mas sim que, apesar de ser ensinada como procedimento de rotina nas Faculdades de Medicina, não havia um único fundamento que a corroborasse. Apenas mitos, como por exemplo que ‘cortar é necessário porque é melhor costurar um corte reto do que costurar uma laceração’. ‘A gente corta porque senão a mulher se rasga toda’. ‘A gente corta pra poder dar o ponto do marido¹, e assim não devolver ao cidadão uma mulher alargada’[…]” (Melania Amorim, médica e PhD pela OMS, sobre a episiotomia²). 

¹ Ponto adicional realizado na sutura da episiotomia para, supostamente, “aumentar o prazer sexual do marido”.

² Corte feito no períneo realizado por incisão cirúrgica para reduzir o tempo do período expulsivo no parto vaginal.

Quando ouvi essa da minha obstetra sobre ser mais fácil costurar um corte reto do que uma laceração irregular, saí correndo e não voltei nunca mais. Pensei “e eu com isso”? Imaginem só se alguém pede um projeto super complexo a um arquiteto e ele vai lá e diz que não dá pra fazer porque é mais fácil um projeto quadrado mesmo? Nós seríamos esculhambados, de fato. Mas nossa sociedade foi ensinada a não questionar a autoridade médica.

Figura 1: Mas era mais fácil de desenhar no Autocad… ( pobre Zaha Hadid)

Pouco se ouvia falar em parto humanizado mas a referência para o grande público como eu era a Gisele Bündchen. Isso era uma péssima notícia porque em comum só tínhamos a nacionalidade. A conta bancária diferia em algumas dezenas de dígitos. Lia na internet que aqui no Brasil as pessoas desembolsavam em média dez mil reais para conseguir o tão sonhado parto domiciliar. Mas além de ser inviável, na real não era isso que eu queria porque, afinal, nem o domicílio eu tinha. Mamãe do céu operou em minha vida e eu descobri o local ideal. 
 

Os Centros de Parto Normal (CPN), ou Casas de Parto como ficaram popularmente conhecidas no Brasil são estabelecimentos assistenciais de saúde criados pela portaria n° 985 de 1999 no âmbito do Sistema Único de Saúde (viva o SUS!), ou seja, é direito de todas nós. Nesses locais, que prestam atendimento humanizado e de qualidade exclusivamente ao parto normal sem complicações, a mulher é a protagonista do seu parto. Tive todas as decisões sobre o meu parto respeitadas, além de oficinas de orientação sobre temas diversos relativos à gravidez, parto, puerpério, cuidados com o bebê, amamentação, entre outros. Os acompanhantes são super bem-vindos e inclusos em todo o processo. É um modelo a ser multiplicado, à revelia das resistências que atuam no sentido contrário. 
 

Dada a minha realidade de estudante de arquitetura e urbanismo e mãe, comecei a me questionar: somos a maioria na profissão mas fazemos arquitetura e urbanismo em benefício de quem? Em 2016, ano em que me formei, nós mulheres éramos 62% dos profissionais registrados no Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU). Apesar disso, ainda estamos submetidas a seguir os moldes daqueles que ganharam todos os ônus na história. Desde então meu intuito é engajar cada vez mais arquitetas e urbanistas para que lutemos por uma forma de fazer que se traduza nossas reais necessidades como mulheres. Não é sobre pintar as paredes de rosa! É sobre não precisarmos mais nos submeter a ambientes que a gente não se sinta confortável num momento de fragilidade. Se somos nós que usamos, nós deveríamos projetá-los! Nós temos e devemos ter mais opções de locais de parto que sejam seguros e viáveis. O modelo da sala fria cujo único mobiliário é uma cadeira ginecológica deveria ser abolido como sala de parto ideal.

Figura 2: Os dois são sala de parto, em qual delas você gostaria de parir?

Como urbanistas, devemos estar inseridas no debate sobre a localização dos equipamentos públicos e como isso afeta as nossas vidas: creches, escolas, postos de saúde, hospitais, centros de parto, equipamentos culturais. Precisamos também discutir sobre locais mais acolhedores para a nossa vida cotidiana, que contemple nossos filhos para que assim a gente possa participar da vida pública com dignidade. Ficou curiosa? Então continue aqui no mês que vem para juntas construirmos uma Cidade Materna.

Por Júlia Matos @cidadematerna

Júlia Matos
Rio de Janeiro - Brasil
Colunista

Júlia Matos é carioca, Arquiteta e Urbanista formada pela UFRJ e Mestra em Projetos Complexos - Sistemas de Saúde pela UFBA. Tem experiência em arquitetura hospitalar, compatibilização de projetos, acompanhamento, avaliação e medição de obras, levantamento e reformas. É pesquisadora nas áreas de arquitetura em ambientes de saúde, humanização dos espaços de assistência ao parto e nascimento, gênero e espaço urbano, segregação sócio-espacial e planejamento urbano, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Integra o Grupo de Estudos em Arquitetura e Engenharia Hospitalar Gea-Hosp/UFBA. Atua junto à Rede pela Humanização do Parto e Nascimento/Rehuna e à Rede de Humanização do Parto e Justiça Reprodutiva da Bahia/Humaniza Parto Bahia. É idealizadora do @cidadematerna.

WhatsApp Image 2021-01-09 at 21.18.40.jp
bottom of page