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Calma que vai dar tudo errado!

25.08.2021

Desapontando mães desde 1995

Drica Madeira

Cara leitora, 

 

As crianças estão em Petrópolis. Não são mais crianças, mas continuam sendo meus filhos e filha. Minha avó teve quatro filhos e uma filha. Ela foi professora e acabou sua carreira no magistério como diretora de uma escola também em Petrópolis. Hoje, separada do marido e com os filhos criados, vive viajando pelo país e jogando buraco. Não, minha avó não é uma feminista mas me ensinou boa parte do que eu sei sobre filhos e filhas, alunos e alunas, trabalho e gravidez na adolescência. Incrível como o tempo passou, nossa distância de idade é de aproximadamente quarenta anos, mas nossos problemas continuam os mesmos. 

A gravidez na adolescência sempre foi um problema social, será? Me pergunto isso porque minha avó casou e foi mãe logo que saiu do colégio interno, ela devia ter mais ou menos 16 anos. Tá bem, eu não casei e ainda estava no ensino médio quando engravidei pela primeira vez. Hoje, mãe de uma filha e dois filhos, doutoranda, partilho com você, um pouco de como foi chegar até aqui.

 

Engravidei, pela primeira vez, no final do ensino médio, com 15 anos. Tive que sair da escola, eram muitas escadas para subir e dedos apontados para enfrentar em uma jornada que levaria meses para voltar a alguma normalidade. Demorei um pouco mais que o tempo regular para acabar o ensino médio, fiz um supletivo enquanto ensinava ao meu filho conhecer as letras em um tapete de vinil espalhado pelo quarto. O quarto que era uma mistura de fotos de adolescente, brinquedos de criança, apostilas do supletivo, fraldas descartáveis entre outras coisas que quem tem filho está absolutamente acostumada. Eu não estava. Mas também não demorei a me acostumar com a nova forma que as coisas tomaram. Morava com meus pais que acolheram, apesar das dificuldades do empreendimento, a filha grávida aos 15.

 

Precisava trabalhar para contribuir com a manutenção da família que eu ajudei a aumentar. Resolvi fazer teatro, mas quem disse que teatro é trabalho? - retrucou alguém que a memória recalcou. Na verdade eu queria ser atriz de TV, mas moradora de cidade pequena, comecei pelo curso de teatro que minha avó se dispôs a pagar e a fazer junto! Nos finais de semana eu fazia parte de uma trupe de teatro da cidade e ganhava o tanto para fazer feira e comprar fraldas. Mas como teatro não era trabalho, rapidamente consegui uma vaga de estagiária na prefeitura. Meu estágio era em um lugar conhecido como “abrigão”, ou melhor, Núcleo de Integração Social. Eu arrumava o quartinho de roupas doadas às pessoas em situação de rua. Ali eu comecei a ter consciência do que Toni Morrison diz “como há vantagens muito importantes em criar e sustentar um Outro, é importante identificar e descobrir quais podem ser as consequências sociais e políticas de repudiar essas vantagens” (2019. p.41). Durante a semana trabalhava com pessoas em situação de rua e nos finais de semana seguia para comunidades carentes com uma trupe de teatro.

 

Como uma jovem mulher eu sabia, atravessada pela experiência da maternidade, que a sexualidade era um assunto privado, mesmo depois de grávida e com filho nos braços o assunto não parecia ocupar o espaço público. A gravidez era pública, o nascimento da criança também mas viver a sexualidade plenamente era prerrogativa da vida adulta, de preferência a ser vivenciada com o sexo oposto e depois do casamento. E no meu caso, como seria? Esse corpo que já transgrediu, estava apto a vivenciar plenamente sua sexualidade? A resposta era não, claro que não! Guacira Louro problematiza a experiência adolescente acerca da sexualidade: “Experimentava-se, de algum modo, a sexualidade? Supunha-se uma preparação para vivê-la mais tarde? Em que instância se aprendia sobre “sexo”? O que se sabia?”(2000, p.07). Conforme a autora, a resposta a todas essas perguntas depende de muitos aspectos, dentre eles, raça, classe, geração, religião e nacionalidade. Jovens ocidentais do final do século XX, por exemplo, terão sem dúvidas, respostas diferentes das jovens orientais desse mesmo século. A minha resposta está no início dessa carta: outra gravidez. 

 

Tinha acabado de fazer vestibular, passei para o curso de artes cênicas na UNIRio. Não fui. Aos 19 anos grávida novamente, de outro namorado. Fiz vestibular para Letras na Universidade Católica e segui levando uma bebê no colo para a sala de aula enquanto minha mãe passava as noites cuidando do neto de três anos. É engraçado que contando esta história, as coisas parecem se encaixar de forma muito perfeita mas, as palavras ainda não são capazes de traduzir aflições indizíveis. Na universidade conheci o Pedro e o movimento estudantil, como você sabe, me transformei em uma militante anticapitalista e feminista. Casei porque enquanto a gente estuda e milita, a gente também namora. Bom, já é 2000, tenho dois filhos, um marido, uma casa, cachorros e faço Letras. Fiz Letras por um longo período, o que não é bom para o Lattes, eu sei. O curso de Letras acompanhou minha militância, meu casamento, o nascimento do meu terceiro filho e minha falta de grana para estudar todos os semestres. Segui firme no propósito e me formei em 2009.

 

Depois de formada não havia nenhuma disposição para a continuação da vida acadêmica. A vida militante em defesa dos direitos das mulheres foi tomando conta de todo o espaço de estudo e vivência. Por ocasião da vida de feminista, fui uma das responsáveis pela implementação de um serviço de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar em Petrópolis, lá na serra fluminense. Naquele momento eu ainda não tinha um olhar apurado para a crítica contemporânea trazida ao universalismo feminista feita por mulheres de cor e do terceiro mundo. Só alcançava que pluralizar a palavra “mulher” daria conta da multiplicidade de mulheres que viviam em situação de violência, mas a realidade mostrava, todos os dias, que as mulheres, negras e pobres, estavam em maior situação de vulnerabilidade e violência.

 

A Universidade Católica abriu o mestrado em Direito, achei que era chegada minha hora. Fiz a prova, fui aprovada! Com três filhos, um trabalho que consumia minha vida, um casamento, cachorros, compras, fazer comida e nenhum dinheiro para dar garantia que o mestrado seria pago. Fui assim mesmo. Àquela altura, o título do projeto de pesquisa apresentado era: “A Lei Maria da Penha como efetivação dos Direitos Humanos das Mulheres”. Na entrevista tive medo de não dar conta, em especial porque eu não tinha a menor ideia de como funcionava um curso de pós-graduação, contei ainda com a falta de receptividade de um dos professores da banca de seleção. Mas como diz Bruno Latour (1997) de que mundo não seríamos capazes de nos familiarizar em dois ou três anos de intensa observação participante? Para falar das ciências é preciso ser especialista, declara-se de modo a bloquear de antemão qualquer pesquisa direta de campo. Esse estado de coisas seria muito chocante em política ou em economia. 

 

Ao final do mestrado, dissertação pronta, apesar de minha pesquisa não alcançar conclusões definitivas ou chegar a um final feliz, eu queria continuar a pesquisar. Estava apaixonada pela universidade, pela potência criativa do conhecimento, queria dar aulas. Mas considerando um mundo acadêmico e um mundo “aqui fora”, eu militava em um partido político, trabalhava, tinha uma família e precisava continuar trabalhando. Continuar na universidade, em primeira hipótese, não era uma opção. Estudava por conta própria e a insistência do que Simone de Beauvoir diz no Segundo Sexo (1949) “que não se nasce mulher, torna-se” era como um mantra repetido por mim todo os dias, eu era absolutamente convencida de que “nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a forma que a mulher ou a fêmea humana assume no seio da sociedade”, era um projeto pedagógico que eu assumia comigo mesma, assumi para educar meus filhos e filha, assumia para não sucumbir à rotina. 

 

Por ora, vou ficando por aqui para não te tomar muito tempo, espero que na próxima carta eu consiga dar conta de falar sobre questões ligadas à educação que me calam fundo.

 

Com amor,

Drica

 

Maranhão, 2021.

Drica Madeira

Colunista
Brasil

Drica Madeira é uma feminista mãe de três filhos. Graduada em Letras Português/Literatura pela  UCP formou-se mestre em Direito pela mesma universidade. Drica atuou como coordenadora executiva da superintendência de direitos da mulher do Estado do Rio de Janeiro e como coordenadora do programa de televisão "Toda prosa". Além disso Drica Madeira tem inumeras publicações nas áreas do Feminismo, Violencia domestica, e Poíiticas públicas e é autora do livro "Maria a Penha: entre a teoria e a prática", da editora Literar. 

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