top of page

Calma que vai dar tudo errado!

25.09.2021

Desapontando mães desde 1995 - Parte II

Drica Madeira

Querida leitora, 

 

Pode se preparar que a academia é isso, quem está dentro, por vezes, quer sair mas quem está fora acredita que entrando conseguirá um espaço ao sol que está a cada dia mais tomado pelas sombras impostas pela colonialidade. Procurei diversos programas de doutorado, nada chegava perto do que eu queria, precisava ser interdisciplinar, queria falar de mulher, gênero e realidade brasileira. Achei! Doutorado em Ciência da Literatura, um programa amplo, interdisciplinar. Mas era na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro - e, novamente, a realidade bate à porta mas desta vez a porta estava fechada. Resolvi que faria o processo seletivo, estudei dedicadamente uma bibliografia absolutamente nova para mim, não conhecia e não dominava. Foi desafiador. Nunca tinha feito um memorial. Não entendia nada sobre universidade pública, suas rotinas, programas, projetos, disputas. Meu projeto inicial era sobre “Dona Flor e seus dois maridos”, segundo avaliação de uma das professoras da banca, o memorial era melhor que o projeto que parecia um tanto escolar, ainda hoje guardo dúvidas sobre o assunto (risos).

 

Escrevo esta carta porque passei na seleção do doutorado e estou em plena construção da minha tese. Pausa. Respiro. É verão, o calor úmido do Maranhão toma conta do meu corpo enquanto escrevo. E escuto uma voz lá no fundo dizendo: cadê as crianças? Apesar do calor, faço um café e me dou conta que nasci no dia 08 de Março, dia em que a ONU declarou em 1975 o “Ano Internacional da Mulher” e, a partir deste ano, o dia 08 de Março foi oficializado como o Dia Internacional da Mulher. Nasci em 1979, ano em que o foi concedido o perdão aos perseguidos políticos. Graças à Lei da Anistia, exilados e banidos voltaram ao Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertados de presídios e delegacias. E esse movimento foi feito por mães. Mães que lutaram bravamente pelo direito aos corpos de seus filhos e filhas, mãe-pátria que contou com homens e mulheres para que as garantias democráticas voltassem a vigorar. E como canta Letrux: “eu queria estar em todas as coincidências do mundo porque é onde todo mundo está um pouco mais místico. Na hora das coincidências todas as pessoas estão mais conectadas, com uma excitação de isso aqui não ser só isso aqui”. Apesar das felizes coincidências, a pergunta volta a martelar. 

 

Enquanto eu crescia, as crianças cresciam comigo, descobri que o mundo não era legal com mulheres que quebram os protocolos da reprodução da espécie. Descobri que é preciso uma aldeia para criar crianças. Aprendi que as crianças não são nossas. Aprendi que o mundo não quer saber das crianças depois que elas saem das barrigas de suas mães. Aprendi que essa escolha, apesar de eu não querer que fosse assim, essa escolha da maternidade é uma escolha que deixa suas consequências sobre os corpos das mulheres. Aprendi que ter filhos e filhas é ter deveres que nunca chegam ao fim. O trabalho começa antes do parto mas não acaba aos dezoito anos. Nossa sociedade cobra, todos os dias, que a gente seja, em primeiro lugar e acima de tudo mãe. A tarefa de cuidados consome todas as nossas forças, muitas vezes, eu achei que não ia conseguir. O que? Conseguir respirar, ir ao banheiro, sair sem sacolas de fraldas, alimentar três bocas, estudar para provas, levar e buscar na escola, não chorar na hora do tombo de um deles ou dela. Isso tudo eu aprendi com as crianças. Onde elas estavam? Comigo o tempo todo. Se não no meu colo, de mãos dadas, dando adeus no primeiro dia de aula, assistindo pela décima vez um filme, chorando porque queriam um brinquedo, aprendendo a tricotar, gritando enquanto eu estudava, ouvindo música no quarto e me chamando para escutar também. Onde elas estavam? Estavam por toda a parte dentro e fora de mim. Não é romântico, nunca foi. Mas eu fui a melhor mãe que eu pude enquanto eu seguia os planos que eu nunca fiz para a vida que eu tenho hoje. 

 

A outra razão, não menos importante, que me levou a escrever esta carta  está intimamente ligada à conquista das mulheres brasileiras ao direito a aprender a ler e escrever, direito reservado somente aos homens até mais ou menos 1830. Direito que me trouxe até aqui, direito que trouxe todas nós até este momento. Segundo Constância Lima Duarte (2003) a primeira legislação autorizando a abertura de escolas públicas femininas data de 1827, e até então as opções eram uns poucos conventos, que guardavam as meninas para o casamento, raras escolas particulares nas casas das professoras, ou o ensino individualizado, todos se ocupando apenas com as prendas domésticas. E foram aquelas primeiras mulheres que tiveram uma educação diferenciada, e tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras. Abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever. Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), nascida no Rio Grande do Norte, em seu primeiro livro intitulado “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, de 1832, trata do direito das mulheres à instrução e ao trabalho, e faz exigências no sentido de que nós fôssemos consideradas inteligentes e merecedoras de respeito.

 

Nossa precursora identifica na herança cultural portuguesa a origem do preconceito no Brasil, acho muito possível enxergar aqui um embrião do que discutimos hoje com o nome de de(s)colonialidade de gênero, já que o processo de colonização no Brasil foi ancorado na racialização, exploração capitalista e no patriarcado, visão simbiótica defendida por Saffioti (1992, p.194-195). Nísia ridiculariza a ideia dominante da superioridade masculina, afirmava que as desigualdades que resultam em inferioridade “vêm da educação e circunstâncias de vida”. Segundo a autora, os homens se beneficiam com a opressão feminina, e somente o acesso à educação permitiria às mulheres tomarem consciência de sua condição inferiorizada. Essa parte de tomar consciência me remete um pouco à condição do proletariado, enfim, não nego meu DNA.

 

O mundo vivido sempre me importou, talvez por isso a universidade não tenha sido, de início, uma meta a ser alcançada. Me deparando com a vida que vivemos, me encontrando e ouvindo as histórias das pessoas, minha subjetividade está ancorada no meu corpo de mulher, talvez por isso o feminismo e os estudos de gênero me fascinam tanto. Posso dizer que para além das coincidências que citei nessa carta, minha trajetória intelectual tem influência direta em meu posicionamento político, sou mulher, mãe, feminista, anticapitalista, antirracista. Tenho muita paixão pelo que faço, não sou uma especialista em determinado assunto como se espera de quem está na academia. Gosto de conhecer, me comovo pelas nossas histórias e nossas vidas, em especial me importa a nossa vida de mulher brasileira, latino-americana e terceiro mundista.

 

A humanidade deve alargar o seu espírito e o seu coração. Sobre a base deste desenvolvimento individual se formará uma poderosa comunidade de novo tipo, na qual o “eu” e o “nós” se fundirão num todo único. Esta comunidade só poderá crescer sobre a profunda base da coesão ideológica, da aproximação dos corações, da compreensão recíproca. Neste aspecto, a arte, em especial a literatura podem desempenhar um importante papel.  (KRUPSKAYA, 1932). 



 

Com amor,

Drica 

 

Maranhão, 2021.



Referências:

 

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo; tradução Sergio Milliet 2 ed - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.

DUARTE, Constância L. Nísia Floresta e Mary Wollstonecraft, “Diálogo e apropriação”. Em RAMALHO, Christina (org.). Literatura e feminismo, propostas teóricas e reflexões críticas.  Rio de Janeiro, Elo, 1999.

FLORESTA, Nísia. Os direitos das mulheres e injustiça dos homens. Introdução, Posfácio e Notas de Constância L. Duarte. São Paulo, Cortez, 1989.

LATOUR, Bruno. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução: Angela Ramalho Vianna. Rio de Janeiro: RelumeDumara, 1997.

KRUPSKAYA, Nadezhda Konstantinovna. Deve-se ensinar ‘coisas de mulher’ aos meninos? 1909/1910. Disponível em: . Acesso em: 15/08/2021.

___________ ______. Carta a Gorki (fragmentos) 1930. Disponível em: . Acesso em: 15/08/2021. 

LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade in: O CORPO EDUCADO 2 ed - Belo Horizonte:. Autêntica, 2000.

MORISSON, Toni. A Origem dos Outros: seis ensaios sobre racismo e literatura; tradução: Fernanda Abreu. 1ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado: violência contra mulheres. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

Em breve

Drica Madeira

Colunista
Brasil

Drica Madeira é uma feminista mãe de três filhos. Graduada em Letras Português/Literatura pela  UCP formou-se mestre em Direito pela mesma universidade. Drica atuou como coordenadora executiva da superintendência de direitos da mulher do Estado do Rio de Janeiro e como coordenadora do programa de televisão "Toda prosa". Além disso Drica Madeira tem inumeras publicações nas áreas do Feminismo, Violencia domestica, e Poíiticas públicas e é autora do livro "Maria a Penha: entre a teoria e a prática", da editora Literar. 

bottom of page