Calma que vai dar tudo errado!
25.11.2021
“Mãe só tem uma, será?”
Drica Madeira
Querida leitora,
Narrar a história desse caso é uma dívida que tenho com as mulheres que lutam pela descriminalização do aborto, com as que lutam pelo direito de decidir, com as que fizeram, com as que ainda farão e, em especial, com as que morreram em decorrência de um aborto clandestino. Às vezes, nem tudo é sobre a gente. Mas quando pensamos nos corpos das mulheres, apesar de diversos, nos encontramos na violência que se manifesta sobre nossos corpos de muitas formas. Concordando com Rita Segato, a ocupação predatória dos nossos corpos vem sendo praticada como nunca antes, e em tempos obscuros como os atuais, essa forma predatória “espolia até deixar somente os restos” (2021, p.88).
De acordo com algumas estudiosas da Ética do Cuidado existem duas formas distintas de assumir decisões morais. Essas decisões morais são divididas pelas posições que nossos corpos ocupam na estrutura que conhecemos como família, levando em consideração a perspectiva de gênero destaco duas:a masculina - centrada em princípios considerados básicos no que diz respeito aos outros, uma moralidade que tem uma orientação para a justiça; e a feminina - centrada no fato das pessoas terem responsabilidades umas com as outras, sendo imperativo o cuidado delas, constituindo uma forma de descobrir e avaliar o real, bem como, reconhecer a complexidade do mundo.
As mulheres têm uma espécie de fio condutor de suas vidas, suas identidades giram em torno de relações estabelecidas com a comunidade e expressam temor em relação ao isolamento, preferindo a lógica da integração (Gilligan, 1982). O fato é que a ética das nossas relações está intrinsecamente ligada à forma como nossos corpos se percebem no mundo. E se as formas de olhar o mundo explicam também nossas formas de tomar decisões, essas decisões morais e éticas estão diretamente ligadas aos corpos sexualizados, vulneráveis e precarizados (Butler, 2018).
Te escrevo porque sei que poucas pessoas se importaram com a morte D.Marli, mãe da Ingriane Barbosa que veio a óbito depois de um aborto clandestino feito com talo de mamona no interior de uma cidade do Rio de Janeiro, mesmo com a dimensão nacional que o caso ganhou. E diante do cenário pandêmico que estamos vivemos, tenho pensado muito sobre a morte e sua banalização. Mortes evitáveis como a de Ingriane e mortes naturais como a de D. Marli são transformadas em espetáculo para a manutenção da ordem vigente, no caso para campanhas contra o abortamento, ou melhor dizendo, contra nossos direitos diante daquilo que conhecemos como corpo.
Na fragilidade que me encontro, impactada pelas mortes, muitas evitáveis, causadas pela pandemia de Covid-19, trilho nessa carta um caminho que nos leve a um exercício de empatia: acompanhar a história de uma família que podia ser qualquer outra família brasileira em condições de precariedades instituídas pelo próprio Estado – patriarcal, racista e neoliberal - quando não garante a mínima dignidade de bem viver aos seus cidadãos e cidadãs.
Ingriane, era uma mulher jovem, negra, mãe de dois filhos e uma filha que ficou conhecida no relato da professora Débora Diniz, em uma audiência pública que discutiu a ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal. Morta depois de fazer um aborto clandestino, em um país onde as políticas para as mulheres estão a cada dia mais em desuso, sem recursos, sem orçamento, sem discussão e sem amparo por parte da máquina estatal. Deixou suas crianças aos cuidados de sua mãe, D. Marli, a quem o Estado brasileiro concedeu a guarda dos três netos depois de meses de peregrinação entre defensorias, juizados, advogados, INSS, Caixa Econômica e burocracias de toda ordem.
Claro que você vai me perguntar: mas as crianças não tinham pai, por que a avó teve que assumir a guarda? E eu, só posso te responder que não existe espaço para a complexidade dessa resposta em uma carta, seria melhor uma tese para explicarmos todas as respostas que a sociedade brasileira já tem em um texto tão curto. Já que segundo levantamento da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC), 80.904 das crianças registradas nos cartórios brasileiros em 2020 têm apenas o nome das mães nas certidões de nascimento, de um total de 1.280.514 nascituros. Tem mais, segundo o IBGE, cerca de 12 milhões de mães chefiam lares sozinhas. Destas, mais de 57% vivem abaixo da linha da pobreza, acho que não preciso dizer aqui que estamos falando majoritariamente de mulheres negras.
Um dia como outro qualquer, a avó/mãe a quem a filha abandonada pelo Estado e pela sociedade brasileira que teima em não discutir e descriminalizar o óbvio, o abortamento, faleceu. Na certidão de óbito, infarto (precedido por causa desconhecida), chegou morta ao hospital. Deixou quatro dos cinco filhos que ainda lhe restavam. Deixou marido e netos. É claro que a morte é a única certeza de quem vive, mas para alguns ela vem a galope, sem assistência, e mostra toda a nossa precariedade com corpos racializados, sexualizados e financeiramente vulneráveis. O abismo da desigualdade nos assola faz tempo, mas nos acostumamos de tal forma que, por muitas vezes, nem sentimos mais dor.
Nessa carta não queria falar somente sobre o abortamento, sua legalização ou descriminalização. Também não quero falar sobre quem vai cuidar das crianças que perderam a avó dois anos depois de perderem a mãe, definitivamente, não é sobre o passado. É sobre mim, sobre você, sobre a sociedade que nos tornamos. A questão maior e fundamental é sobre como vamos viver, que mundo queremos e podemos construir. De qual moral e ética podemos falar quando falamos sobre os outros? O quanto você consegue se sentir parte do outro que também é você?
Com centralidade na realidade das relações interpessoais, precisamos valorizar a responsabilidade, estabelecer capacidades de respostas que incluam o afeto, a atenção, o cuidado para com o outro, uma ética que se estabelece ao mesmo tempo que constrói uma melhor compreensão do mundo. Uma ética e moral que leve em conta o sujeito em sua ambiguidade, um sujeito que esteja em construção permanente em relação àquilo que não é ele mesmo (Beauvoir, 2005). Mobilizar um imaginário diferente do que se vive no neoliberalismo, onde todos somos empresários de nós mesmos, onde tudo é concorrência e o vínculo com o outro só contribui para a maximização de mim mesmo (Brown, 2019). Na perspectiva da "Ética do Cuidado", as pessoas, ao permitirem aos outros sentirem dor, tornam-se, elas próprias, responsáveis por essa dor, constituindo de forma imperativa a tomada de atitudes para prevenir ou aliviar essas dores.
Sendo assim, a expressão do cuidado, o ato de cuidar é superior a muitos outros que desenvolvemos socialmente, porque envolve atenção específica às necessidades particulares do outro, que é uma pessoa concreta, criando uma relação imediata de identificação. De alguma forma todos foram e são “cuidadores de” e “cuidados por”. O projeto de si mesmo depende de um passado que existe anterior à nossa própria existência. Resgatar a noção de comunidade e batalhar por uma nova forma de entender, organizar a sociedade e viver a vida faz parte de um projeto emancipador que atualmente enxergo, em especial, no feminismo anti patriarcal, anticapitalista e anti racista.
Me despeço com a crença no nosso poder em valorizar o comum, em desenvolver uma ética do cuidado que atente para o sujeito enraizado, dependente e comprometido com a comunidade. A descriminalização do aborto faz parte de uma conduta ética do cuidado com nossos corpos que são os que tombam na ausência de políticas públicas. Não podemos nos deixar enganar pela falsa contradição entre a favor ou contra o abortamento, no julgamento social destinado àquelas que por razões diversas precisaram abortar. É preciso lembrar todos os dias que nossa ética passa necessariamente pela máxima: nem presa, nem morta. Nos queremos vivas!
Maranhão, 2021.
Com amor,
Drica
Referencias bibliográficas:
BEAUVOIR, Simone de. Por uma moral da ambiguidade / tradução Marcelo Jacques de Moraes- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
HOOKS, Bell. Teoria Feminista: da margem ao Centro/ Tradução: Rainer Patriota – 1ed. - São Paulo: Perspectivas, 2019.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo, Politeia, 2019
BUTLER, Judith Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia / Judith Butler; tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla Rodrigues. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
GILLIGAN, C. In a Different Voice: Psychological Theory and Women‟s Development. Cambridge: Harvard, 1982.
NODDINGS, Nel (1984), Caring, a feminist approach to ethics and moral education, Berkeley: University of California Press.
PAREDES, Julieta. Uma ruptura epistemológica com o feminismo ocidental. Originalmente publicando em Hilando Fino: Desde el Feminismo Comunitário. La Paz: Mulheres Creando, 2010, p. 75 -94.
SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda; tradução Danielle Jatobá, Danú Gontijo. - 1 ed. - Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
Drica Madeira
Colunista
Brasil

Drica Madeira é uma feminista mãe de três filhos. Graduada em Letras Português/Literatura pela UCP formou-se mestre em Direito pela mesma universidade. Drica atuou como coordenadora executiva da superintendência de direitos da mulher do Estado do Rio de Janeiro e como coordenadora do programa de televisão "Toda prosa". Além disso Drica Madeira tem inumeras publicações nas áreas do Feminismo, Violencia domestica, e Poíiticas públicas e é autora do livro "Maria a Penha: entre a teoria e a prática", da editora Literar.