Calma que vai dar tudo errado!
25.10.2021
Eu tenho um coração fora do peito
Drica Madeira
Caríssima,
Demorei muito a escrever esta carta, como você bem sabe as minhas aflições acerca do mundo em que vivemos me toma muito tempo e, como diria Lélia Gonzalez, a consciência exclui o que a memória teima em incluir. Aqui estamos, são dezoito anos juntas, ou seja, quando penso na minha vida, não consigo pensá-la sem você. Me formei, me separei, fiz mestrado, trabalhei com mulheres em situação de violência, fui secretária de cultura da nossa cidade, trouxe minha avó e minha tia autista para morar conosco, construí minha casa, entrei no doutorado, minha irmã mais nova morreu e você sempre esteve aqui. Sem falar das mudanças, andei fazendo as contas e você não vai acreditar: mudamos de casa mais de dez vezes e, em todas elas, você estava empacotando ou desempacotando coisas.
Nosso contrato de trabalho sempre foi em torno dos afazeres domésticos, o combinado era que você cuidaria da casa, mas você extrapolou e eu deixei. Dizer que eu deixei é uma forma menos ofensiva de dizer que eu fui conivente com uma estrutura perversa, racista, sexista e classista que se abate sobre os corpos das mulheres, em especial das mulheres negras. Você cuidou das crianças, dos meus dois filhos e da minha filha. Fazia comida, cuidava do uniforme, levava na natação. Quando me dou conta do que acabo de escrever, percebo o início dos problemas que enfrentarei para tentar chegar ao final desta carta.
Certo dia, li no jornal: Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu ao cair do 9° andar de um prédio no centro do Recife enquanto estava sob os cuidados da patroa de sua mãe, já que a empregada doméstica foi cumprir a tarefa de passear com o cachorro. A mãe da criança, ao voltar do passeio com o cachorro, encontrou seu filho morto na entrada do prédio. Em plena pandemia de Covid-19, com mais de 580 mil mortos, várias mães seguem para o trabalho porque o contrário não lhes é permitido. Sem lugar para deixar seus filhos(as), levam suas crianças na certeza de que com a mãe sempre estarão mais seguras. Miguel tinha cinco anos. Sua mãe, empregada doméstica, filha de empregada doméstica também, tinha ido passear com o cachorro e deixou seu filho sob os cuidados de sua patroa porque mesmo em tempos de pandemia a patroa não podia limpar sua própria privada, fazer sua comida ou, ainda, passear com seu próprio cachorro. Eu podia fazer meia culpa e dizer que eu nunca faria uma coisa dessas, mas o problema está justamente aí. Volto a Lélia Gonzalez, filósofa, negra e brasileira, o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira (2019, p.238). Nesse sentido, continua a filósofa, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos, particularmente sobre a mulher negra.
Eu nunca soube dos seus filhos, sei alguma coisa da sua mãe porque ela também foi empregada doméstica na casa da mãe do meu marido (veja só que coincidência?!). Sinceramente, nunca soube de verdade aonde eles estavam quando você vinha trabalhar na minha casa cuidando dos meus filhos, onde estudavam, o que eles comiam, o que eles queriam fazer da vida quando crescessem. Se saber racista e assumir um determinado lugar na estrutura de classes é uma tarefa difícil mas depois de feita fica impossível tornar a colocar um véu sob a consciência. Estou nessa situação. O que eu faço então com os últimos anos em que vivemos juntas mas que, em verdade, você viveu para mim e para os meus? Então não vivemos juntas porque eu não vivi nem com, nem para você. A relação patroa e empregada sempre existiu por aqui mas a gente fez com que ela ficasse mais amena, menos evidente. Até o dia daquela notícia no jornal o que a gente vivia me parecia uma parceria, mas agora tenho a consciência que não era.
Nessa altura dos acontecimentos, pedir desculpas por aquilo que eu não enxerguei, não seria justo. Também não me sinto confortável nessa posição de vítima, não é possível fazer nada para remediar o que passou mas já que eu não sabia o que estava fazendo, então também fui vítima dessa estrutura racista em que estamos todas inseridas? Poderia dizer que sim, alguns podem até achar justo, mas eu mentiria para mim mesma. Nunca me esforcei para enxergar a condição da outra mulher que vivia na minha casa, cuidando dos meus filhos, a invisibilidade que toma conta dos corpos das trabalhadoras domésticas, também tomou conta do seu, você estava ali e isso era o suficiente. “Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus (...) Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto”(GONZALEZ, 2019. p.240).
O que está ocultado e o que está aparente nesse discurso do “somos todos iguais”. E para mim, para você, bem como para a nossa relação a pergunta talvez mais importante e difícil de responder: como duas mulheres, com a mesma idade e quantidade de filhos(as) ocupam lugares tão distintos na estrutura societária? Será que a maternidade, pelo menos ela nos unifica? A maternidade talvez sim mas a maternagem certamente não. Eu pari e você cuidou. Mas e dos seus dois meninos e da sua filha quem cuidava? Lélia Gonzalez, em sua interpretação do Brasil, falava muito do papel da mãe preta que é atualizado como o papel da babá, ou, pensando na domesticidade, como mais um dos papéis assumidos pela mesma mulher, a prestadora de serviços (de todos os serviços ligados à casa e às pessoas que nela moram). Se na escravidão a resistência da mãe preta garantia sua sobrevivência e a sobrevivência dos seus negociando sua capacidade de amamentar o filho da casa grande, a empregada doméstica desenvolve estratégias de cuidado com as crianças e, atualmente, com idosos também em um processo de não resistir às funções que lhe são atribuídas para além do contrato de trabalho, acredito que para a manutenção de seu contrato de trabalho.
Voltando ao que me trouxe até aqui, nossa relação de cuidados e trabalhos domésticos, eu tenho certeza, hoje mais do que nunca, que sem a sua presença e o seu trabalho, ter uma vida fora de casa seria inviável para mim. Sendo assim, quando falamos do trabalho doméstico não é possível não falar da condição das mulheres, já que social e historicamente, os homens não estão obrigados a cuidar da casa, das crianças e dos idosos. Uma maneira de ilustrar isto é notar o quantitativo de mulheres que se ocupam, principalmente, do serviço doméstico, segundo dados da PNAD Contínua de 2018, 95% do contingente de trabalhadores de serviços domésticos eram mulheres. O que destaco nessa história seria a necessidade de que todos os seres humanos reconhecessem como trabalho, realizado gratuitamente ou de forma remunerada, o trabalho doméstico.
Diante desse destaque posso chegar a duas possíveis conclusões. Uma é a de que como o trabalho doméstico, não remunerado, realizado majoritariamente por mulheres dentro de suas próprias casas não reconhecido socialmente, reforça o “conceito da invisibilidade do trabalho feminino” (PEREIRA DE MELO et al, 2007, p. 451). A outra, seria o fato desse trabalho se misturar com a culpa e o amor de quem cuida podendo ser uma outra chave de leitura para compreender a razão dessa falta de reconhecimento. Como me disse uma jovem pesquisadora: quanto dinheiro valeria o trabalho doméstico realizado gratuitamente pelas mulheres no interior de seus próprios lares?
Você pode imaginar o quão difícil foi chegar até aqui. Tomei muito café pensando em você, arrumei muita casa nesses tempos estranhos de pandemia pensando em você. Pensando em quantas vezes eu não pensei que sua mão ia queimar quando você fosse limpar o congelador que eu tinha esquecido de deixar descongelar na noite anterior. Cada vez que meus dedos ficavam duros e pareciam que iam cair eu lembrava de quanto trabalho eu não sabia que você fazia e não sabia o quanto doía seu corpo ao fazê-lo. Insisto na escrita, tirando coragem do útero, tentando dar visibilidade às experiências que vivenciamos juntas e que o pacto patriarcal, racista, branco insisti em invisibilizar.
Tenho consciência de que arrisco muito alto nessa escrita, mas meu trabalho não poderia ser diferente, estou aqui para ser avaliada pela minha capacidade de construção de uma aproximação entre o que vivenciamos na academia e na vida, uma vontade de estreitar os mundos de quem age e de quem pensa, na verdade isso tudo sempre esteve junto mas alguns ainda insistem em separar. Nunca tive a pretensão ou mesmo a intenção de falar por você, sei do abismo racial que nos separa mas, sei também das questões de gênero que podem nos unir. Falar a partir do lugar que ocupo nessa história foi um processo doloroso e agora, ao fim e ao cabo, me sinto inteiramente exposta. Romper o silêncio e desvelar verdades encobertas pela dominação e a colonialidade é também acreditar que podemos fazer com que o lugar que ocupamos, nossas identidades e nossas falas possam transformar o mundo em que vivemos!
Com amor,
Drica
Bibliografia:
GONZALEZ, Lélia. RAcismo e sexismo na cultura brasileira. In BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa (org). Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto/ angela arruda (et al); Rio de Janeiro. Bazar do Tempo, 2019, p.237 – 256.
PEREIRA DE MELO, Hildete. De criadas a trabalhadoras. Revista Estudos Feministas, IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, V. 6, N.2, 1998.
__________________ et al. Os afazeres domésticos contam. Economia e Sociedade, Campinas, v. 16, n. 3 (31), p. 435-454, dez. 2007.
PINHEIRO, Luana et al. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínua IN: Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília : Rio de Janeiro : Ipea , 1990-2019.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=27762&t=resultados acessado em 10 de Jul. 2021
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-miguel-otavio-veja-quem-e-quem.ghtml
Drica Madeira
Colunista
Brasil

Drica Madeira é uma feminista mãe de três filhos. Graduada em Letras Português/Literatura pela UCP formou-se mestre em Direito pela mesma universidade. Drica atuou como coordenadora executiva da superintendência de direitos da mulher do Estado do Rio de Janeiro e como coordenadora do programa de televisão "Toda prosa". Além disso Drica Madeira tem inumeras publicações nas áreas do Feminismo, Violencia domestica, e Poíiticas públicas e é autora do livro "Maria a Penha: entre a teoria e a prática", da editora Literar.