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Anticolonialismo e libertação das mulheres

20.01.2021

A LUTA ANTICOLONIAL DO MOVIMENTO DE MULHERES KAIOWÁ E GUARANI E A VIII ASSEMBLEIA DA KUÑANGUE ATY GUASU

Gislaine Monfort

Os Kaiowá e Guarani são povos originários da região sul do estado de Mato Grosso do Sul e compõem a segunda maior população indígena do Brasil com mais de 60 mil pessoas. O tekoha guasu - grande território Kaiowá e Guarani -  tem sido profundamente impactado desde os fins do século XIX com a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e formação dos Estados, mas sobretudo, desde o século XX período em que se aprofunda a descaracterização dos tekoha - território tradicional e “lugar em que se é”, através da criação de oito pequenas Reservas Indígenas entre 1915 e 1928 através do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e da expansão do amplo desmatamento da Mata Atlântica, bioma predominante nos territórios ancestrais desses povos, para territorialização das fazendas e conversão de pastagens e monoculturas.

Processo que se intensificou com os incentivos das políticas do Estado para o avanço das fronteiras agroextrativistas após os anos 60 e que ganha uma grande propulsão nestas duas décadas do século XXI com as políticas da esquerda institucional que levou a cabo esse modelo predatório, e que tem sido aprofundado pela extrema direita militar, clerical, latifundiária e empresarial cujo principal figurante é Jair Bolsonaro. O atual contexto socioterritorial em que se encontram os povos Kaiowá e Guarani remontam assim esse amplo processo de mudanças nas dinâmicas ecológicas e reorganização espacial que tem como efeito um vasto processo de precarização territorial, etnocídio e ecocídio.

Frente a isso, os povos reelaboram sua histórica resistência e ampliam as lutas anticoloniais através da auto-organização dos Conselhos Tradicionais desde o fim dos anos 70. Em um primeiro momento através da Aty Guasu (Conselho e Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani), e posteriormente com a Kuñangue Aty Guasu (Conselho e Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani) e a Retomada Aty Jovem – RAJ.

A Kuñangue Aty Guasu tem sido o fronte contra o tripé Patriarcado/Colonialismo/Capitalismo e tem levado a cabo a luta anticolonial através das ações autônomas das mulheres frente à violência contra seus corpos-territórios pelas mãos de violadores karaí (branco) e suas instituições estatais, do agronegócio como modelo produtivo que só gera morte, e da capitania (ferramenta perversa utilizada como política do Estado para controle dos territórios indígenas fomentada ao longo da ditadura militar e que predomina até os dias de hoje).

Essas ações autônomas que emergem das lutas das Mulheres Kaiowá e Guarani se manifestam através de processos de retomadas de porções do tekoha com forte protagonismo das mulheres e de dinâmicas de auto-organização e cuidado mútuo nas diferentes configurações territoriais em que se encontram.

Diante disso, é importante ressaltar que na última semana de novembro de 2020 ocorreu a VIII Kuñangue Aty Guasu em meio ao contexto atual de crise sanitária, ecológica e política que assola o mundo. As mulheres Kaiowá e Guarani de forma auto-organizada realizaram mais uma assembleia, desta vez de forma virtual, dada a condição em que nos encontramos. De acordo com o Manifesto da Kuñangue foram imensos os desafios para construção de uma assembleia virtual, pois há uma grande invisibilidade digital nos territórios Kaiowá e Guarani e com o isolamento social se intensificou a invisibilidade dos territórios indígenas e a voz das mulheres foram cada vez mais silenciadas. Conforme o Manifesto, durante o processo de organização do apoio às comunidades, as companheiras que estavam a frente dessa rede de atuação ouviram muitos relatos sobre as situações de violências contra as mulheres, meninas, crianças, jari (mulheres mais experientes que auxiliam no parto), parteiras e nhande sy (rezadoras).

Mesmo diante disso, construíram uma ampla rede de apoio mútuo e estabeleceram oito pontos de internet em oito territórios diferentes, entre eles: Panambizinho e Bororó (município de Dourados), Guapo’y e Limão Verde (Amambai), Guyra Kambi’y (Douradina), Rancho Jacaré (Laguna Carapã), Nhanderu Marangatu (Antônio João), Laranjeira Nhanderu (Rio Brilhante) e Jaguapiré (Tacuru), para que as principais protagonistas da luta anticolonial das mulheres – as nhande sy (líderes político-espirituais) – pudessem estar presentes compartilhando as rezas e dizendo sua mensagem e luta à todas as latitudes do mundo. Segundo a Kuñangue Aty Guasu, o movimento convocou as conselheiras e decidiram enfrentar os desafios da tecnologia e realizar a assembleia em meio à pandemia mesmo diante das dificuldades relacionadas à localização geográfica, ao recurso financeiro e a falta de equipamento para uma assembleia online.

“Dessa forma, se levantou uma legião de mulheres de todos os cantos do mundo, atendendo ao chamado das Conselheiras da Kuñangue Aty Guasu. Jovens Kaiowá e Guarani comunicadoras foram convocadas para ajudar a operacionalizar a tecnologia em território. (...) ao som do mbaraka e do takuapu, direto dos territórios Kaiowá e Guarani, no dia 28 de novembro de 2020, iniciamos a VIII Kuñangue Aty Guasu 2020 online. A Assembleia foi um marco revolucionário da comunicação, em plena pandemia em nossos territórios indígenas: foram três dias e três noites de descolonização e demarcação das telas virtuais. computador e tudo era novidade para elas. Suas vozes ecoaram ao mundo em audiência internacional, em busca de reconhecimento e efetivação de nossos direitos (KUÑANGUE, 2020, p. 6).

Durante a assembleia, as mulheres Kaiowá e Guarani denunciaram os violadores de seus tekoha e de seus corpos-territórios, os quais vão desde um professor de uma Faculdade Intercultural Indígena (FAIND-UFGD) que tem violado e criminalizado as mulheres que lutam e têm sido acusado há anos pelo Movimento de Mulheres, até os capitães das aldeias que são frutos da política colonialista que sustenta o indigenismo de Estado e os ruralistas que invadem suas terras ancestrais e distribuem veneno por todas as formas de vida que habitam estas terras.

Denunciaram também o terrorismo de Estado que violenta e arranca crianças de suas mães; a violência brutal do agronegócio que jorra veneno sobre mulheres, homens e crianças nos territórios; a violência contra as nhande sy pelas igrejas neopentecostais que criminalizam a cosmologia, saberes e espiritualidade dos povos Kaiowá e Guarani; assim como denunciaram a violência contra o uso da medicina e flora tradicional, conhecimentos ancestrais que está sobretudo nas mãos das parteiras e rezadoras. Além disso, fizeram um chamado ao mundo para que vejam, mas sobretudo para que se posicionem e combatam a violência brutal que ocorre contra os povos indígenas, especialmente as mulheres, no Mato Grosso do Sul.

Em meio à pandemia as/os Kaiowá e Guarani também fortaleceram ações autônomas levantando mais de 60 barreiras sanitárias em diferentes contextos territoriais para prevenir/diminuir a expansão da doença, além de diversas campanhas de solidariedade, as quais também tiveram como protagonistas as mulheres. Demonstrando que os caminhos da autonomia e a política ancestral das Mulheres é o solo fértil para combater o modelo predatório e genocida do Patriarcado/Colonialismo/Capitalismo.

Por fim, diante desse contexto, destacamos nossa solidariedade à luta anticolonial do movimento de Mulheres Kaiowá e Guarani e ressaltamos a importância do fortalecimento da rede de apoio entre os Movimentos de Mulheres em âmbito internacional. Nesse sentido, nos unimos à fala de uma grande guerreira Kaiowá:

“Devemos nos unir uns aos outros, guiados por esses guardiões que nos conduzem de volta à terra. Somente assim poderemos conquistar nosso futuro, junto com todos os povos que lutam para que o planeta terra possa ainda respirar” (Veron, 2018, p. 17).

Fontes

KUÑANGUE ATY GUASU. VIII Kuñangue Aty Guasu Grande Assembleia de Mulheres Kaiowá e Guarani: um chamado das Mulheres Kaiowá e Guarani. Mato Grosso do Sul, novembro, 2020.

VERON, Valdelice. Tekombo’e kunhakoty: modo de viver da mulher kaiowá. 2018. 42 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Sustentabilidade), Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

Gislaine Monfort
Colunista
Mato Grosso do Sul - Brasil

Discente do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande /PPGG/UFGD. Graduada em Geografia pela mesma Universidade. Participa do Grupo de Pesquisa GeoPovos/UFGD e do Coletivo Autônomo de Apoio Mútuo às Mulheres Indígenas (MS). E tem interesse em estudos relacionados a: autonomias territoriais indígenas; lutas anticoloniais; lutas e movimentos de libertação das mulheres; saberes tradicionais e multiplicidade socioterritorial; crises ecológicas e Ecologia Política. 

Área de formação: Geografia (Licenciatura)


Pesquisa: Lutas territoriais e autonomias Kaiowá e Guarani. 
 

Organização: Coletiva Autônoma de Apoio Mútuo às Mulheres Indígenas

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