top of page

Matrêscencia Literária

02.11.2021

Olhos d’agua, de Conceição Evaristo

Ana Marcante

A última indicação literária deste ciclo e com certeza, não menos importante, é uma indicação de contos. Sou fã de carteirinha dos romances, pouco leio contos, mas quando esse veio para mim, foi uma descoberta linda, triste e poética.

 

Olhos d’agua é o penúltimo lançamento de Conceição Evaristo, lançado em 2014 pela editora Pallas. São quinze contos reunidos em uma única obra, todos relatos dos  reflexos da escrevivência: palavra cunhada pela própria autora que têm como significado a escrita de nós. Conceição Evaristo tem como marca em suas escritas, debater a violência de gênero, discriminação racial, preconceitos de classes e temáticas que envolvem as desigualdades socias vividas por uma mulher negra no Brasil. Conceição tem origem pobre e conseguiu concluir seus estudos apenas aos 25 anos, conciliando sua vida de estudante com o trabalho doméstico. A partir daí, ela ingressa na carreira acadêmica e começa a construir o caminho de uma das maiores referências da literatura escrita por uma mulher, negra e periférica do nosso país.

 

Olhos d’água não é uma narrativa de fácil digestão. Nela algumas realidades são apresentadas de forma desnuda, sem romantizações e idealizações, intenções de escrita que são marcos  na forma como Conceição trabalha sua escrita. Seus contos misturam suas próprias escrevivências, com a realidade que ela viu e vê ao seu redor, trazendo essas histórias que muitas vezes ficam nos Becos das memórias (Becos da memória é um livro escrito pela autora em 2006) de nossa sociedade. Sem perder a sensibilidade e trazendo de forma crítica, as vezes quase que em forma de poesia, a autora vai tecendo através dos contos, as vivências que muitas mulheres têm no Brasil, misturando questões sociais do passado, presente e futuro e demonstrando o quanto a violência é banalizada em nosso país, deixando para a literatura o  ofício  de resgatar o que há de humano na periferia. Olhos d’agua também mexe com os nossos preconceitos e nosso desconhecimento sobre realidades violentas e ignoradas pela sociedade, instituições e o  Estado.

Para mim, a literatura em geral tem esse superpoder de nos lançar nas histórias e vivências dos outros. E nem sempre é fácil, dificuldade que não identificamos quando simplesmente abrimos a página de um livro. Aí começamos a ler. E viver no “couro” do outro pode ser uma experiência inquietante, às vezes até causa calafrios e os sentimentos vêm à toda: precisamos lidar com as unicidades, contradições e formas próprias de agir com o mundo, em cada personagem. Olhos d’água me provocou exatamente isso. 

Em algumas entrevistas de Conceição, ela descreve que escrever é sua forma de sangrar. Um dos contos que mais me tocou com esta fala de Conceição foi  “A gente combinamos de não morrer”,  impactante e assertivo, de forma muito poética, a autora traz a voz de vários personagens, reais e fictícios, e suas não conformidades em aceitar perdas banais.

 

A escrita de Olhos d’água e a própria trajetória da autora se misturam bastante, tornando impossível desvincular a mulher Conceição, com as mulheres personagens das  obras. Conceição Evaristo é hoje uma das maiores referências como escritora negra e também como intelectual, do nosso país. Títulos que foram construídos com muita resistência e ocupação nesse eixo que é tão branco e patriarcal, desde a publicação de suas obras em editoras que reconhecessem a importância social dos debates que Conceição levanta, quanto do lugar que ocupa na academia. Conceição se tornou referência para mim desde a primeira leitura e facilmente entrei para o seu grupo de admiradoras. Precisamos ter escritoras que nos representem e que lutem pela publicação de literatura afro-brasileira, que tragam para suas narrativas os conflitos sociais, históricos e contemporâneos. Para além disso, precisamos que a escrita dê voz para a nossa forma de estar no mundo, seja ela prazerosa para quem lê, ou não. A literatura tem sim um potencial transformador social, ela também é um direito de todos, como tal, precisa estar e chegar em todos os espaços. Se a literatura for exclusiva para alguns, para quem ela serve?

Referência

EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Editora Pallas, 1º edição, 2016 – Rio de Janeiro

Colunista
Canelas - Brasil

Ana Marcante

Ana Marcante é Mãe, graduanda em licenciatura de Geografia e pesquisadora de politica e gênero.

Atua como Monitora educacional Educadora perinatal e Doula.

Ana acredita que a leitura é transformadora e que funciona como um super poder, fazendo com que pessoas se tornem melhores conforme vão compreendendo sua própria existência.

bottom of page