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Matrêscencia Literária

02.11.2021

A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, de  Maria José Silveira

Ana Marcante

O título já é um pequeno quebra cabeças: A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. Precisamos parar um instante para pensar sobre quem é o que este livro vai falar. E ao longo da narrativa, percebemos o quão perfeita foi essa escolha de título. 

 

Maria José se lança nesta obra com o grande desafio de escrever a história do Brasil, através dos olhos de personagens fictícias e bem caricatas de seu próprio tempo, cujo qual acompanharam o fluir da formação do país, desde sua concepção até os dias atuais. Cada capítulo vai falar sobre uma mulher, suas vivências, seu tempo histórico e desafios enfrentados enquanto é tecida a  formação do país. 

 

A obra nos impressiona pela ousadia e singularidade de caráter, ao contar de forma tão única essa estória/história que já foi tantas vezes representada, mas que parece só nesse momento, através desses relatos fictícios  tão impregnados de mãos de mulheres,  fazer algum sentido. São 500 anos de história, aos olhos de uma linhagem única, através de cada nascimento e  vida em seu próprio período e em alguns casos a morte da personagem também. Existe também o deslocamento geográfico dessas mulheres, nos trazendo conhecimento de outras paisagens territoriais que vão compor a obra. Os nomes para cada personagem também são fortíssimos e nos trazem uma sensação de pertencimento: nomes bem nativos e resgatados no tecido do tempo.

É fácil reconhecer-se em quase todas as personagens, muito bem construídas, e que  nos fazem viajar nesse Brasil e nesse espaço, nos fazendo imaginar como nossas ancestrais lidaram com os desafios de outros períodos que o Brasil já viveu. São vivências e formas de lidar com a realidade, diferentes por seu próprio contexto histórico, mas com atitudes  muito similares com o que qualquer uma de nós mulheres faria nas mesmas situações e com o que era permitido dar a cada uma. Além disso, de forma sucinta, a autora nos apresenta a inserção de classes em que cada personagem está colocada e o que essa posição representará na construção daquela personagem. Os homens também estão presentes na obra, as histórias se cruzam, porém nesta narrativa, estes serão personagens secundários, serão aqueles que  acompanham a vida e o desenrolar de cada personagem, pois é através dos olhos das mulheres que a narração é contada. 

Conseguimos identificar muitos elementos de ancestralidade, espiritualidade, crendices e rezos, como quando em muitos momentos,  percebe-se a tentativa das personagens em, de alguma forma, preservarem seus costumes e origens tradicionais. Brasil colônia, república, tenentismo, revoltas liberais, ditadura, redemocratização e como bônus, lançado em 2019, um capítulo extra, que vai estar dentro do contexto atual de um passado muito próximo,  com uma personagem que vive o impeachment da presidenta Dilma. Pouco a pouco a história desenrola a formação política e social do país. 

 

Maria José demonstra um mergulho na historiografia do país para compor a obra, que ironicamente, fez mais sucesso na gringa do que dentro do Brasil. O livro nos cativa, instiga e provoca. Conseguimos ver o profundo sentimento de amor dessas personagens mulheres,  pelo país em que nasceram, na vivência de cada uma, e na forma de lidar com os desafios de seu próprio tempo. Quando nos afastamos da obra, vemos uma estória perfeita e que faz sentido. Então assumimos essa historicidade também como nossa.

 

Maria Flor (1968-...) “Este país! Ela se achava incapaz de compreender o que via acontecendo sob seus olhos, e era imensa sua desilusão com a possibilidade de o brasileiro vir a ter algum tipo de vida melhor e mais justa.  Nesse trecho, Maria Flor não consegue entender como foi que o país chegou às mazelas que enfrentava em 1960. Esse recorte que a autora faz é perfeito, pois logo pensamos: e se Maria Flor pudesse ter o  conhecimento histórico de sua própria história através de um livro escrito por uma mulher e com narrativas que trazem  o ponto vistas de mulheres? Não seria incrível e esclarecedor? 

 

A leitura é muito prazerosa e vale cada instante. Super indicada para quem aprecia historiografia e literatura, mas muito mais para quem busca ler mais literatura feita por mulheres e que centralizam suas personagens em suas narrativas.

Referência

SILVERIA, Maria José. A mãe da mãe de suas mãe e suas filhas. Editora Globo Livros, 1° edição, 2002;  2 edição, 2019

Em breve

Colunista
Canelas - Brasil

Ana Marcante

Ana Marcante é Mãe, graduanda em licenciatura de Geografia e pesquisadora de politica e gênero.

Atua como Monitora educacional Educadora perinatal e Doula.

Ana acredita que a leitura é transformadora e que funciona como um super poder, fazendo com que pessoas se tornem melhores conforme vão compreendendo sua própria existência.

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