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Maternidade, Estado e Feminismo

13.10.2021

"Você tava em live, mamãe?"

Bárbara Ferreira de Freitas

"Você tava em live, mamãe?". Pode parecer uma pergunta comum, se não fosse uma criança de seis anos perguntando se a mãe dele não o atendeu porque estava “em live”. O Miguel é autor da frase e filho desta escritora. Ele e várias crianças já incorporaram a ideia de que a mamãe trabalha "em live" porque nas cabecinhas deles, as mães vivem no computador e quem fica ali é porque trabalha nisso. 

 

Essa é uma das consequências do teletrabalho e das suas dinâmicas, que invadiram a casa das mulheres mães de forma avassaladora. E para lidar com os trabalhos reprodutivos dentro desse processo, vamos criando táticas de sobrevivência, ponderando entre obrigações, prazos profissionais e as demandas emocionais e materiais das crianças. E, nesse processo, criam-se conciliações… "Um minutinho, Miguel, a mamãe já vai" é o que eu falo a mais uma demanda exaustiva do teletrabalho ou de algum processo acadêmico. 

 

Após dias assim, quando chega o final da semana,  a sensação é que corremos uma maratona desordenada, com largada, mas sem linha de chegada. E lá se foram infinitos “minutinhos a mais” que nos consomem até a última gota. Mas, para as mães é como se não houvesse última gota ou último trabalho, estamos sempre nos limites da exaustão e em um processo contínuo, onde a permanência é a regra. Só que ainda tem o final de semana inteiro e óbvio, que há necessidade de tempo de qualidade com a criança. E havemos de apertar mais um pouquinho para mais um suspiro de energia naquele joguinho de dominó ou na historinha antes de dormir.

 

Assemelha-se a uma guerra por semana, onde diante de um adversário tão estruturante quanto o Estado e sua regulação pela falta, permanecer na luta por aquela chance na seleção de emprego, ou pela vaga do doutorado, ou pela aprovação no concurso dos sonhos, exige-se muito mais que esperança e determinação. Quando defendo a ideia de uma regulação estatal pela falta, refiro-me a deliberação intencional do Estado de não se fazer presente em políticas públicas que garantam às mulheres mães, condições de vida e trabalho dignas, acesso paritário ao mercado de trabalho, combatam a exclusão e discriminação contra esse grupo social.

 

O dia a dia dessas mulheres que acumulam tantas tarefas, soa como uma guerra já vencida, quando no acúmulo de "nãos", a impotência muitas vezes predomina. Fato é que, o Miguel aqui é apresentado porque as crianças passam por todos esses processos juntos com as mães. Quando atingimos uma mãe, ou quando o Estado lhes nega assistência ou quando a excluímos, não é só uma vida que menosprezamos, tem uma criança junto que sofre em proporção equivalente uma carga que não lhe compete. E ela termina suportando junto com a mãe as violações das políticas de exclusão. 

 

Isso me recorda que um dia estava assistindo aula online para concursos, dessas já gravadas, aí o Miguel, solta: "Mamãe, sabe que eu todos os dias lembro do dia que te vi chorar porque o professor foi grosso com você?". Ele se referia a um outro certo dia quando um professor do mestrado em Direito me chamou, em outras palavras, de aproveitadora das causas minoritárias, na frente de toda a sala, porque eu pedi para apresentar o seminário antes do horário previsto para buscar o Miguel na escola. Aqui percebe-se que além da cobrança por produtividade diária, temos que lidar com pequenas exclusões, violências, discriminações, dentre outras situações que nos fazem muitas vezes perder o dia ou pensar em desistir. 

 

Portanto, a história aqui contada não é um relato pessoal, mas uma experiência que ecoa coletivamente, uma relação social estruturante e estruturada por interesses econômicos e políticos. O teletrabalho, as novas modalidades de prestação de serviço à distância e as novas dinâmicas da vida-trabalho das mulheres, atingem de forma violenta também as crianças e é nesse processo que se desvela a crueldade da regulação estatal pela falta, que reproduz violências, fomenta a competitividade neoliberal e aumenta a desigualdade de gênero no mercado de trabalho ao excluir ou diminuir o acesso das mulheres mães.

Em breve

Bárbara Ferreira de Freitas

Colunista
Rio de Janeiro - Brasil

Bárbara Ferreira Freitas é mâe do Miguel de 6 anos, graduada em direito e mestre em Estudos interdisciplinares de Gênero, Mulheres e Feminismo pela UFBA.

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