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Maternidade, Estado e Feminismos

13.08.2021

A carga social do trabalho de cuidados das mães e os marcadores sociais de desigualdade

Bárbara Ferreira de Freitas

Desde a década de 70 no Brasil que mulheres intelectuais e militantes feministas têm refletido e teorizando sobre os trabalhos reprodutivos desempenhados pelas mulheres no âmbito privado e como tais trabalhos condicionam a condição das mulheres no espaço público. Contudo, esse contexto performa especificidades a depender dos marcadores sociais de desigualdade em termos de raça, gênero, classe, território, origem, sexualidade, dentre outros.

 

Os trabalhos reprodutivos são todos aqueles considerados necessários para a criação de seres humanos, só que tais atividades são direcionadas de forma essencialista às mulheres, como se pessoas do sexo feminino nascessem com maiores aptidões para o exercicio de afazeres relacionados aos cudados, tendo as mulheres, o destino de criar filhos, cuidar dos enfermos e se profissionalizarem em áreas relativas a tais atividades. Mas, ter a maternidade como destino, ser proibida de exercer atividades de força, ter a reserva do ambiente privado como único lugar ou ser poupada dos trabalhos desgastantes, sempre foi algo direcionado a um grupo social de mulheres: as brancas. 

 

Como denunciou Sojourner Truth, em 1851, seus três filhos foram vendidos como mercadorias e nunca nenhum homem abriu a porta para que ela passasse. Ela não seria uma mulher?¹ Ou como trouxe Angela Davis, as mulheres negras nunca foram poupadas dos trabalhos pesados na lavoura durante a escravidão, sendo obrigadas a realizar os mesmos trabalhos que os homens até com os seios jorrando leite e sangue. Ou ainda, como relatou exaustivamente Carolina Maria de Jesus, nos seus diários, seus filhos nunca foram protegidos ou cuidados, mas excluídos e discriminados.

 

Ao nos debruçarmos sobre as entrelinhas dos trabalhos reprodutivos e as diversas formas de exercício da maternidade, perceberemos que há um grupo social específico de mulheres que tem a maternidade como destino e outro que a tem negada, vivida na resistência e com armas apontadas para seus filhos.

De fato, há um Estado omisso, que se traduz pela ausência de políticas públicas que garantam redes de proteção e cuidado social e desonere as mulheres mães da carga social do cuidado. Só que a ingerência e a não responsabilidade estatal sobre a reprodução social implica em sobrecarga social de trabalho das mulheres mães às quais são imputadas a tarefa de gerir e garantir os cuidados de seus filhos ou providenciar redes que supram a demanda. 

 

Só que é aí que vemos mais nitidamente às entrelinhas da divisão sócio sexual e racial do trabalho, pois as mulheres que podem arcar onerosamente terceirizam os cuidados a outras mulheres de raça e classe social determinada.  A ausência deste  Estado tanto de redes de proteção e cuidado, como de emprego e renda, joga como cuidadoras e no emprego doméstico as mulheres negras, sendo elas obrigadas a deixarem seus filhos com os irmãos mais velhos, outras mulheres, vizinhas, amigas, avós, para cuidarem dos filhos das mulheres brancas de classe média.

 

Temos hoje um quadro em que a maioria das empregadas domésticas são mulheres negras, com baixa escolaridade (IPEA, 2019) e, segundo a Federação Nacional das Empregadas Domésticas (FENATRAD), o emprego doméstico ainda é uma das principais formas de inserção das mulheres negras no mercado de trabalho. Preta Rara (2018) escancarou, em relatos virtuais de empregadas domésticas e diaristas de todo o Brasil, gerações de mulheres que são exploradas por famílias brasileiras que fazem do quartinho de empregada, a senzala moderna. 

 

Sim, a carga social do trabalho de cuidados é altíssima, responsável pelo teto de vidro na carreira profissional das mulheres, mas é preciso reconhecermos que nesse campo há divergências, diferenças e diferenciações de opressões, a depender dos marcadores de classe social e raça destas mulheres, como podemos inferir a partir do conceito de interseccionalidade trabalhado por Carla Akotirene (2018): na avenida da interseccionalidade, o encontro das diferenças é visualizado na perspectiva de uma encruzilhada e o não reconhecimento dessas especificidades, traz para o acidente do choque a produção de outras opressões.

 

Portanto, é tempo de além de denunciarmos a carga social do trabalho de cuidados e de exigirmos redes de proteção, percebermos nossas diferenças, ampliarmos às pautas, ser ação e exemplo pedagógico.  Nas trincheiras da luta das mulheres mães, devem estar todas e todes, não é possível admitirmos ainda que algumas mulheres sejam obrigadas a ficar em casas para que outras mulheres alcancem melhores empregos, desenvolvam sua carreira e sejam feministas. A carga social é universal, mas os pesos são  produzidos,  sentidos e arcados de formas distintas. Reafirmo o mesmo que Silvia Frederici (2019), não é amor, é trabalho não pago, mas ressalto que há múltiplas mulheres que sequer este amor não pago podem exercer em paz.

¹ Em 1851, Sojourner Truth, ex- escrava, discursou na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos como forma de contestação no tratamento recebido pelas mulheres negras e exaltando que elas não eram tratadas das mesmas formas que às mulheres brancas, já apontado diferença na representação do ser mulher. 

² https://fenatrad.org.br/trabalho-domestico/

 

 

 

 

Referências:

AKOTINERE, Carla. O que é interseccionalidade? Editora Letramento, 2018.

 

DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, Boitempo, 2016.

 

FEDERICI, S. O ponto zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminsita. São Paulo: Elefante, 2019. 

 

JESUS, Maria Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 1993.

 

PINHEIRO, Luana; LIRA, Fernanda; REZENDE, Marcela; FONTOURA, Fontoura. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínua. Brasília: IPEA, novembro de 2019.

 

RARA, Preta. Eu empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

 

TRUTH, Souljourney, 1851. (Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos)

Em breve

Bárbara Ferreira de Freitas

Colunista
Brasil

Bárbara Ferreira Freitas é mâe do Miguel de 6 anos, graduada em direito e mestre em Estudos interdisciplinares de Gênero, Mulheres e Feminismo pela UFBA.

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