top of page

Maternidades: cordões de "úteros" diaspóricos

20.08.2021

Imagens autodefinidas de maternidades em contexto de pandemia

Josinélia Chaves Moreira

Desde que acolhi a escolha de Janaína para ser sua mãe, só consigo ver imensidão nessa palavra, mesmo diante das dores, prisões e dos preconceitos. Os seus sentidos são múltiplos, diversos e se renovam constantemente, sobretudo, porque não cabe fixação, determinação ou imposição de características do que significa “ser mãe”. Mesmo que tentem matá-la, colocá-la em lugares estanques, ela sempre encontra passagens, paragens, bifurcações. Seu nome pressupõe transbordamento por meio dos seus caminhos espirais como continuidade da vida, já que nossos “úteros” são portais de acesso ao mundo. Confesso que antes, eu não queria tocar ou ouvir a enunciação dessa palavra. Tinha repulsa e achava confortável o lugar de filha. Hoje, nesse processo de assentar as ideias, com base nas beberagens de escrevivências (EVARISTO, 2007) maternas, entendi que a maternagem sempre ocupou o espaço de presença em muitas das minhas atividades.

 

Na verdade, digo isso, pela presença das mulheres que habitam a minha família, mas também por todo o processo de formação enquanto mulher, negra, nordestina, interiorana e filha de trabalhadores rurais. Recupero, nesse gesto, a importância do ato de plantar, o qual se assemelhava ao parir, fertilizar a terra. Tínhamos a tarefa de clamar o chão para que os frutos pudessem vir e matar a nossa fome. Um exercício de cálculo, planejamento, etapas iniciadas antes do momento de preparo da terra; permeando a semeadura, o transplante e os cuidados posteriores. Fazíamos isso agachadas, um ritual de muitas mãos. Após o transplante da muda para terra, os cuidados só aumentavam. Era preciso cuidar, conversar e vingar a planta. Minha mãe era quem encabeçava, sobretudo, quando tinha que dar terra à planta em fase de crescimento. Semelhanças com o ato de amamentar, para depois iniciar o processo de escolha do broto que poderia vingar e dar lindos frutos. Em seguida, ela continuava ensinando, como tornar fortes a planta com banhos de sol e suportes para que os galhos não entortassem e quebrassem com o peso do fruto. Um verdadeiro processo de ensinar a planta a dar os primeiros passos, se sustentando naquelas estacas de madeira, tiradas pelo meu pai ou compradas na região. A colheita era também regada com respeito, cuidado e agradecimentos. Era o momento de celebrar o trabalho e de agradecer a pujança da vida que sempre colaborou no nosso pacto de não nos matar. 

 

Por que começar com essas palavras? Primeiro, porque esse é um dos lugares de nascimento da instituição mãe em minha vida. Não consigo me desvencilhar desse lugar, de uma escrita gestada-escrevivente. Quando escrevo, as minhas memórias molham os meus pés, mas também de muitas pessoas que edificaram (e edificam) quem sou. Segundo, da necessidade de construir leituras “autodefinidas”, como marca Patricia Hill Collins (2019, p. 179) ao tratar do “Poder da autodefinição” como “atos de resistência organizados e anônimos” de mulheres negras, em busca de um lugar ao sol. Buscar um lugar ao sol, leitura que adoto ao pensar a literatura no processo de doutoramento, que significa estender o máximo da voz, o “eu”, mesmo quando insistem em nos fixar no lugar da “‘Outra’ dos outros”, já que as mulheres negras “[...] não são brancas nem homens e servem, assim, como a ‘Outra’ da alteridade.” (KILOMBA, 2019, p. 191, grifo da autora). A invisibilidade e desumanização beiram a nossa existência, no entanto, insistimos em construir “[..] uma posição de outsider interna que estimula a criatividade em muitas de nós.” (COLLINS, 2019, p. 184). E, por fim, escrever sobre imagens autodefinidas de maternidades parte de um desejo do que eu gostaria de ler, como afirma Toni Morrison quando questionada por que escreve esse tipo de livro (histórias de pessoas negras), a exemplo de O olho mais azul (1970), Sula (1973) e Amada (1987) (WALKER, 2021, p. 14).  Alice Walker enfatiza o quanto essa resposta de Toni Morrison escancara 

“[...] o fato de que, numa sociedade em que a ‘literatura padrão’ é tantas vezes racista e machista e, além disso, irrelevante ou ofensiva para muita gente, ela deve trabalhar por duas. Ela deve ser tanto seu próprio modelo quanto a artista seguindo, criando, aprendendo e tornando real tal modelo, no caso, ela mesma.” (WALKER, 2021, p. 15).

 

Guiada pelas palavras de Toni Morrison e de Alice Walker, tenho nesses quatro anos, desde quando engravidei doutoranda, ancorado em imagens femininas negras históricas e comunitárias, por exemplo, nas minhas bisavós: Ana Marcolina Chaves, Floriana Moreira do Carmo, Ana Barbosa e, avós: Avelina de Almeida Chaves, Altenisa Santana Barbosa e tia Teresa Moreira Carvalho. Um voltar para dentro para recolher minhas memórias uterinas e as tranças que sustentaram (e sustentam) a minha vinda, para depois, a partir dessas referências afrocentradas, caminhar pela simbiose do complexo de possibilidades que envolvem a instituição maternidade (aceite e recusa). Leio esses movimentos como busca de “espaços seguros de estímulo à consciência das mulheres negras” (COLLINS, 2019, p. 187), para poder falar individualmente e de forma livre, no intuito de construir uma perspectiva coletiva e autodefinida sobre nós. E isso só está sendo possível, mesmo em um contexto pandêmico e de morte, por entender a importância do “reconhecimento compartilhado” (COLLINS, 2019, p. 188), apoio mútuo de mulheres negras que nos encorajam a seguir, a transformar “o silêncio em linguagem e em ação” (LORDE, 2019, p. 49). 

 

“A fala me recompensa [...]”, segundo Audre Lorde (2019, p. 49), principalmente porque estou viva, não entrei na conta dos mais de quinhentos e cinquenta e oito mil óbitos evitáveis por Covid, no Brasil. Estamos há dois anos em um contexto pandêmico, um cenário caótico, de muita tristeza, mortes evitáveis e um vazio significativo. Não consigo parar de pensar nas mães, mulheres “em grandes diversidades” (VASCONCELOS, 2014, p. 55), as quais têm sido impactadas significativamente com essa pandemia. Uma crise que atinge frontalmente todas as categorias de mulheres, sobretudo, as enfermeiras, técnicas de enfermagens, que estão na linha de frente no cuidado com as pessoas contaminadas; as trabalhadoras domésticas que sentem na pele os impactos, tanto àquelas que não foram “liberadas” do trabalho, mesmo com o risco iminente de contaminação em conjunto com os abusos que já eram expostas e foram intensificados, quanto às que perderam o emprego e morreram por conta da exposição ao coronavírus; mães em suas multiplicidades que enfrentam as intensidades das desigualdades de gênero e raça pela triplicação das atividades de cuidados com o lar, as crianças, o trabalho; as mães solo; as mães que não conseguem cumprir o isolamento pelas condições de moradia, uma das face das desigualdades raciais e sociais do mundo, especialmente, no Brasil, assim por diante.

 

Todo esse contexto, ainda em análise dos impactos da pandemia na vida das mulheres, tem evocado rasuras e dobras de (re)existências e de (auto)descolonização de corpos, principalmente, pelas consequências que as desigualdades e vulnerabilidades socioeconômicas, políticas, culturais imprimem em corpos negros. Revela também a necessidade de repensar os estudos construídos ao longo dos anos sobre a categoria mulher, assim como das palavras “mãe”, maternidades e maternagens. Na verdade, essas questões já têm ocupado um debate nos múltiplos femininos, sobretudo, o feminino negro, o qual tem rasurado e construído epistemologias próprias que deem conta dessa complexidade que ancoram corpos tatuados pela interseccionalidade de “[...] mulheres de cor, lésbicas, terceiro mundistas, interceptada pelos trânsitos das diferenciações, sempre dispostas a excluir identidades e subjetividades complexificadas [...]” (AKOTIRENE, 2018, p. 25-26). Tais iniciativas são importantes como norteadoras das demandas de lutas por políticas públicas que atendam plenamente os direitos das mulheres e suas diversidades.

 

Diante disso, me apropriei do conceito de autodefinição de Patricia Hill Collins (2019), para esboçar novas vias epistêmicas, interseccionais de construção do “eus”, por meio do empoderamento, do poder de humanizar, do direito de ser mulheres em grandes diversidades, bem como de exercer e erguer as nossas vozes como potência e necessidade de autonomia e independência. Nesse sentido, a noção de autodefinição proposta por Collins (2019), nos ajuda a construir e pensar em outros lugares para maternidades de mulheres negras, indígenas, trans, lésbicas, “atípicas”, assim por diante, que usam cotidianamente suas próprias experiências de vida para desafixiar termos/práticas eurocentrados e de várias maneiras. Para tanto, é preciso desconstruir as imagens de controle (COLLINS, 2019): mães homogêneas, mães boas, mães fortes, mães desnaturadas, mães parideiras, mães dependentes do estado, dentre outras, as quais incidem significativamente na vida dessas mulheres em contextos pandêmicos, as quais tem assumido múltiplas funções. A pergunta que ecoa é como a pandemia provoca uma discussão sobre maternidades, maternagens, mães e as políticas de estado? Não tenho respostas, no entanto, penso que essas e outras imagens de controle exigem de nós, novas epistemes sobre a categoria mulher e mãe, assim como políticas interseccionais, afirmativas, de igualdade e reparação.

 

Assento por um tempo essa nossa conversa, com o pensamento de que mães são reverberações que atravessam (direta ou indiretamente) os corpos de muitas mulheres, ora como vazão pela amplitude e complexos que habitam essa instituição, ora como re-presa que retesa uma série de sentimentos, dizeres, imposições e padrões. Por isso, deixo como oferenda o poema “Mãe”, do livro Poesias Pós Parto, da atriz, poeta, Priscila Obaci (2020), o qual dialoga com as “exsurgências” que envolvem a palavra mãe. 

 

Mãe

 

Mãe é um lugar que a gente nunca

devia sair de dentro

Da quentura e sombra necessária

para as ideias germinarem...

Mãe é uma terra firme que proporciona o voo e

depois se abrem colchão bem fofo para quando

quebrada a asa, nosso rosto ainda sentir seus beijos

Quanto mais somos galhos crescentes em

direção ao Sol, nos afundamos nela

Mãe é raiz forte que vitamina a vida

E quando o mundo diz Não, em

seu ventre há sempre Sim

Sinceridade que nunca acaba para aterrar

Mãe é o lugar que a gente corre

toda vez que tem medo

O coração dela é uma célula de amor que

se multiplica e vira quantos corações a

gente precisar, para seguir com coragem

Ela é sempre um olhar além do alcance, que vê

a pedra com uma pedra e não com uma muralha

É sempre renascimento

Chuva quando está tudo seco

Sol de novo

Amanhã

É lua no mistério de ter resposta para tudo

Mãe é o aconchego que tem o balanço do mar

e cheiro de entardecer

Uma rede que embala seu sono, quando

a cabeça está ligada na confusão

É uma respiração profunda que preenche

tudo de serenidade e paciência

É a eternidade, amor que não finda

E luz...

Mãe é Dar luz quando tudo parece perdido...

E não adianta se fingir de forte, ela sempre

sabe quando algo se quebrou...

Só quando somos Mãe também entendemos...

... somos sempre parte dela...

Por isso quando queremos nos sentir Todo,

é para debaixo do seu olhar que corremos...

E mesmo quando ela não está mais em matéria,

se faz presente em sonho e memória...

Poema de Mãe não tem fim, Ela sempre vai

te surpreender com uma nova possibilidade

de ser generosidade e amor.

(OBACI, Priscila. 2020, p. 28-29)

  

¹ O termo se refere às mães de crianças, jovens ou adultos com deficiência, as quais realizam uma “maternidade atípica”. Esse processo de nomear, especificar e autodefinir essas mães, faz parte de um movimento que tem acontecido nos últimos anos, em prol de trazer o problema, discutir, refletir, mas também construir políticas públicas específicas que atendam essas famílias.

 

 

 

REFERÊNCIAS:

 

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2018.

 

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.

 

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de Minha Mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antonio (Org). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-21.

 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – episódios de racismo quotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

 

LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e em ação. In: Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p. 49-54.

 

OBACI, Priscila. Mãe. In: Poesias Pós Parto. São Paulo: Oralituras, 2020, p. 28-29.

 

VASCONCELOS, Vania Maria Ferreira. No colo das Iabás: raça e gênero em escritoras afro-brasileiras contemporâneas. 2014. 228 f. Tese (Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/16641. Acesso em: 25 jul. 2021.

 

WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista. Tradução de Stephanie Borges. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2021.

Josinélia Chaves Moreira

Colunista
Salvador - Brasil

Josinélia Chaves Moreira é uma pesquisadora nascida em Barra do Choça, BA. Mãe de Janaína, graduada em Letras Vernáculas, Josinélia também é mestre e doutoranda em Literatura e cultura pela UFBA.

bottom of page