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Maternidades: cordões de "úteros" diaspóricos

20.09.2021

Maternidade negra: uma instituição comunitária

Josinélia Chaves Moreira

Como fecundar esperança e alegria, a partir de todo o contexto de morte que estamos vivendo? Essa é a pergunta que ecoa, desde o momento em que decidi escrever sobre o conto “Ayoluwa, a alegria de nosso povo” (EVARISTO, 2016), o qual é um dos nutrientes que fertiliza o tema da Maternidade negra como uma instituição comunitária. Esse conto é o último dos quinze que estruturam o livro Olhos d’água (2016), de Conceição Evaristo, uma das grandes referências da Literatura Brasileira. Impossível não ler o livro e conectar com a capacidade de cura e força das águas que se espargem em cada enredo, mas também recolher as insinuações dessas águas evocadas no título e no conto homônimo de abertura como águas primeiras de mamãe Oxum, águas correntezas de “rios calmos, mas profundos e enganosos” (EVARISTO, 2016, p. 19); águas do gozo-pranto de  Davenga; águas que umedecem os sonhos da menina Querença; águas-sangue que acompanham o corpo pisoteado de Maria; águas de Natalina quatro vezes amnióticas; águas de um amor entre iguais pelo direito de amar em “Beijo na face”; águas de Luamanda multiplicadas pelas necessidades do amor; águas de Cida, Zaíta, Di lixão, Lumbiá, Kimbá e Ardoca; águas fincadas na fala-desejo de Dorvi e costuradas com os fios de ferro da mãe de Bica; e, por fim, águas íntimas de uma alegria inventando a sobrevivência de uma comunidade, do conto a ser analisado. 

 

Enquanto colhia o conto, fiz o caminho do dia em que me descobri grávida, com todos os sentimentos que assomavam em meu corpo ao ver os dois pontos vermelhos. Um gesto de deslembrança, mas necessário. Lembro-me que tudo ocorreu muito rápido. A primeira imagem foi da mãe ocidental preenchendo cada traço do meu corpo, me amordaçando e tampando tudo. Era impossível ver. Eu sentia o breu, a escuridão, a solidão e os traumas que invadiram e tomaram conta. A construção remendada, moldada de acordo com os padrões coloniais, foi se desmoronando. Como viver essa nova experiência com todos esses traumas transbordando e molhando a minha possibilidade de dar à luz? Ser fértil e fertilizar não apenas o embrião em processo, mas o meu corpo, a minha vida e os meus sonhos? A minha memória ancestral foi amordaçada pelo meu inconsciente colonizado que deixou por um bom tempo com esse buraco do vazio, da culpa, do julgamento, da vergonha, do escândalo.

 

Desde então, tenho feito um caminho de maternagem molhada pelo ouvir, sentir, pegar, acionar e temperar os sentidos, ebulindo-os em cada dobra do corpo como nutrientes que mantém minha ancestralidade viva, desde antes. E tudo isso está sendo possível com as contranarrativas negras espalhadas pelas águas atlânticas, que têm buscado recolher os signos, os sinais de maternidades outras e possíveis para mulheres negras. Sem a pretensão de exaustão, cito as seguintes obras, textos tanto em prosa quanto em verso: Maya Angelou com os livros Eu sei por que o pássaro canta na gaiola (1969), Carta a minha filha (2008), Mamãe & Eu & Mamãe (2013); Toni Morrison com os livros, O olho mais azul (1970), Amada (1987), Compaixão (2008); Ayana Mathis com o livro As doze tribos de Hattie (2012); Chimamanda Ngozi Adichie com o livro Hibisco Roxo (2003); Ayòbámi Adébáyò, com o livro Fique comigo (2018); Scholastique Mukasonga com A mulher de pés descalços (2008); Teresa Cárdenas com o livro Cartas para minha mãe (2010); Maria Firmina dos Reis com o livro Úrsula (1859) e o conto A escrava (1887); Carolina Maria de Jesus com os livros Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961) e Diário de Bitita (1986); Geni Guimarães, com os livros Leite do peito: contos (1988), A cor da ternura (1989); Conceição Evaristo com os livros Ponciá Vicêncio (2003), Becos da Memória (2006), Poemas da recordação e outros movimentos (2008), Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011), Olhos d’água (2014), Histórias de leves enganos e parecenças (2016); Canção para ninar menino grande (2018); Ana Maria Gonçalves com o livro Um defeito de cor (2006); Cristiane Sobral com o livro Não vou mais lavar os pratos (2010); Elizandra com o livro Águas da cabaça (2012). 

 

Nesse sentido, a partir da energia das palavras-sementes espalhadas no conto “Ayoluwa, a alegria de nosso povo”, cavo a terra, semeio e busco germinar a ideia de uma maternidade coletiva que alimenta a sobrevivência de uma comunidade. Não faço esse movimento sozinha, por isso convoco também as mães de terreiro, as mães de criação, as tias e tios, vizinhos e vizinhas que gestam crianças nas diversas comunidades que cruzam esse nosso país. A pandemia reacendeu o quanto o movimento de gerar, gestar, manter, criar, nutrir e produzir de muitas mães negras dentro de suas comunidades é uma responsabilidade que reflete coletivamente, e em várias instâncias formativas desse país, como também exsurge no conto.

 

Conceição Evaristo, no início do conto, nos conduz a navegar pela mina d’água, cabeceira e fonte do mundo, em que a simples anunciação do nome Alegria, devolve a vida em suas diversas formas de pulsação à toda comunidade. Antes disso, o cenário é de caos, destruição, morte, já que tudo não vingava, prosperava, apenas “pitimbava”.

Quando a menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos. Há muito que em nossa vida tudo pitimbava. Os nossos dias passavam com um café sambango, ralo, frio e sem gosto. Cada dia era sem quê nem porquê. E nós ali amolecidos, sem sustância alguma para aprumar o nosso corpo. Repito: tudo era pitimba só. Escassez de tudo. Até a natureza minguava e nos confundia. Ora parecia um sol desensolarado e que mais se assemelhava a uma bola murcha, lá na nascente. Um frio interior nos possuía então, e nós mal enfrentávamos o dia sob a nula ação da estrela desfeita. Ora gotejava uma chuva de pinguitos tão ralos e escassos que mal molhava as pontas de nossos dedos. E então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejos para os nossos corpos. (EVARISTO, 2016, p. 111-112)

Nesse cenário de dor, desespero, da falta de tudo, tão parecido com o que estamos vivendo, os personagens vão se definhando pela incapacidade de reconhecer a importância da fecundidade em suas vidas, na força que carregam em seus nomes como uma memória ancestral. Assim “os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo. O que fizeram, então? Deram de clamar pela morte.” (EVARISTO, 2016, p. 112). Depois, as mais velhas também se compadecem desses sentimentos, pois, não acreditam mais na eficácia de si mesmas. Em seguida, os moços também perdem essa referência, o chão, e se encavernam “[...] dentro deles mesmos, a se tornarem infelizes. Puseram-se a matar uns aos outros, e a tentarem contra a própria vida, bebendo líquidos maléficos ou aspirando um tipo de areia fininha que em poucos dias acumulava e endurecia dentro de seus pulmões.” (EVARISTO, 2016, p. 112). 

À noite, quando reuníamos em volta de uma fogueira mais de cinzas do que de fogo, a combustão maior vinha de nossos lamentos. E em uma dessas noites de macambúzia fala, de um estado tal de banzo, como se a dor nunca mais fosse se apartar de nós, uma mulher, a mais jovem da desfalcada roda, trouxe uma boa fala. Bamidele, a esperança, anunciou que ia ter um filho. (EVARISTO, 2016, p. 113)

Sem as vigas, a estrutura base dos mais velhos e das mais velhas, aqueles que têm muito a ensinar, a fecundação seca, desertifica tudo, “o milagre da vida deixou de acontecer [...].” (EVARISTO, 2016, p. 113). Nada nascia, criava ou se sustentava, desde os mais velhos até as crianças, “[...] o povoado infértil morria à míngua e mais e mais a nossa vida passou a desesperançar...” (EVARISTO, 2016, p. 113). No entanto, quando essa comunidade se volta para si, para aquilo que representa conexão, irmandade ancestral, a vida começa a pulsar.

O desenrolar do conto caminha na força do perfazimento dessa comunidade, fecundada com e pela mulher que tinha em seu nome, a esperança, Bamidele. Dessa maneira, o milagre da vida que estava adormecido, porém, inscrita na circularidade de um tempo como continuidade de uma cadeia ancestral, devolve a fé, as águas amnióticas como cabaça da vida para toda a comunidade: “mulheres, homens, os poucos velhos que ainda persistiam vivos, alguns mais jovens que escolheram não morrer, os pequenininhos que ainda não tinham sido contaminados totalmente pela tristeza, todos se engravidaram da criança nossa, do ser que ia chegar.” (EVARISTO, 2016, p. 113). 

 

Essa é uma gestação comunitária, banhada com o líquido amniótico ancestral, uma construção matripotente, segundo a socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (2016). A matripotência para Oyěwùmí é esse lugar não biológico e muito menos de gênero, um lugar do espraiamento das dimensões criativa e da maternidade que organizam as comunidades africanas, dada a importância política dessa instituição. E isso se deve aos “poderes, espiritual e material, derivados do papel procriador de Ìyá.” (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 3). Logo, a categoria Ìyá é a procriadora do mundo, a fonte, como mostra o mito de Oseturá, uma vez que “como todos os humanos têm uma Ìyá, todos nascemos de uma Ìyá, ninguém é maior, mais antigo ou mais velho que Ìyá. Quem procria é a fundadora da sociedade humana, como indicado em Oseturá, o mito fundador iorubá.” (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 3). A Ìyá é anterior, a mais velha em relação a qualquer pessoa; é ela quem procria e fecunda a humanidade, longe de uma imposição de gênero, já que é “[...] uma identidade mística que não é comparável a nenhuma.” (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 12). 

 

Quando localizamos esses signos e símbolos da importância da Ìyá nas Améfricas (GONZALEZ, 1988), as histórias escreviventes, a exemplo do conto colhido, nos conectam com os sentidos de maternidades negras de algumas comunidades africanas como signos de esperança, amparo, ciclo vital, invenção, liberdade, cura, fortaleza, responsável por uma continuidade de uma linhagem ancestral. E isso é possível, a partir do conceito de amefricanidade de Lélia Gonzalez (2018, p. 329), como “[...] um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada [...]”. Nesse contexto, “Ayoluwa, a alegria de nosso povo” é uma narrativa que adentra não apenas a gestação de uma criança (Alegria), mas também a própria noção de criatividade que levanta, reacende, reconecta, embeleza e vigora essa comunidade. 

 

Uma criatividade carregada pelos nossos ancestrais, mesmo nas travessias de dores, e que se espalha, amontoa, vaza em nossos corpos. Pensar em como fizeram tudo isso, diante dos horrores da escravidão, me leva para a deslembrança do dia em que me vi grávida, em que apenas consegui retesar as águas, procurando respostas e negando todos os esforços de uma ancestralidade que sempre soube quem é e do que é feita. Gesto que se assemelha com o vivenciado pela comunidade do conto, no entanto, a “força vital” do anúncio da chegada da Alegria, devolve a vida e a potência da criatividade de toda a comunidade. Hoje consigo entender o quanto a chegada de Janaína em nossas vidas, mudou e deslocou as (in)certezas:

Nas águas de Janaína, 

mergulhei e (re)nasci.

Vi minha imagem,

refletida no espelho d’água.

Ela me acordou,

recordou e fertilizou memórias coletivas.

Molhou meu rosto,

brotando nascente de águas,

sulcos que se abriram no meu corpo marrom-terra.

(MOREIRA, 2020, não publicado).

Com isso não estou dizendo que só tenho alegrias; tenho também dores, raivas, uma série de sentimentos que caminham nessa construção da minha maternagem. A diferença é que tenho respeitado as inquietações, buscado viver com menos culpa e remorso, por não conseguir dar conta. E isso revela o que significa ficar feliz, ou ainda, “plenos de esperança” com a chegada de uma criança, como acontece no conto, “mas não cegos diante de todas as nossas dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias questões a enfrentar. A maior era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no valor da vida... Mas sempre inventamos a nossa sobrevivência.” (EVARISTO, 2016, p. 114). 

 

E com essa certeza de que não estamos cegos sobre as dificuldades que ainda habitam a instituição maternidade, longe de uma romantização, as águas fecundas de Esperança, se rompem e procuram deságue nas íntimas dobras da vida de todos. A alegria e sua mãe, Esperança, fermentam disruptivamente o “o pão nosso de cada dia” (EVARISTO, 2019, p. 114), como esse elemento indispensável à sobrevivência humana; são caminhos que ligam as tubas uterinas de homens e mulheres, pulsando vida em suas diversas formas de resistência.

E todas nós sentimos, no instante em que Ayoluwa nascia, todas nós sentimos algo se contorcer em nossos ventres, os homens também. Ninguém se assustou. Sabíamos que estávamos parindo em nós mesmo uma nova vida. E foi bonito o primeiro choro daquela que veio para trazer a alegria para o nosso povo. O seu inicial grito, comprovando que nascia viva, acordou todos nós. E a partir daí tudo mudou. Tomamos novamente a vida com as nossas mãos. (EVARISTO, 2019, p. 114).

São com essas palavras, com a tomada de vida com as nossas mãos, que entrego esse chão-texto e convido vocês a fermentarem a esperança, a nutrirem a alegria e gestarem novas experiências sobre maternidades e maternagens, longe de generalizações, mesmo com o caos que caminha aqui fora e dentro de nós. Sigo a reflexão da narradora, que nos brinda com um dos grandes ensinamentos desse conto: “E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução.” (EVARISTO, 2016, p. 114). 

 

 

 

 REFERÊNCIAS:

 

EVARISTO, Conceição. Ayoluwa, a alegria de nosso povo. In: Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, Fundação Biblioteca Nacional, 2016. 

 

GONZÁLEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº. 92/93 (jan./jun.), 1988, p. 69-82.

 

GONZÁLEZ, Lélia. Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora, 2018.


OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Matripotência: Ìyá nos conceitos filosóficos e instituições sociopolíticas [iorubás]. Tradução para uso didático de OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Matripotency: Ìyá in philosophical concepts and sociopolitical institutions. What Gender is Motherhood? Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2016, capítulo 3, p. 57-92, por wanderson flor do nascimento. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com/. Acesso em: 23 jul. 2021.

Em breve

Josinélia Chaves Moreira

Colunista
Salvador - Brasil

Josinélia Chaves Moreira é uma pesquisadora nascida em Barra do Choça, BA. Mãe de Janaína, graduada em Letras Vernãculas, Josinélia tambem e mestre e doutoranda em Literatura e cultura pela UFBA.

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