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Maternidades: cordões de "úteros" diaspóricos

20.11.2021

Dorato: estilhaços de maternidades

Josinélia Chaves Moreira

Queridas irmãs de cor,

 

É com muito prazer que eu pego na minha caneta para saber de suas notícias e ao mesmo tempo contar-lhes as minhas. Espero que quando esta carta chegar em suas mãos, encontre todas, na medida do possível, bem e com saúde. Eu sei o quanto isso tem sido cada vez mais difícil, especialmente, em tempos tão sombrios, com tantas vidas perdidas por um governo genocida e por uma sociedade vazia de sentido. De antemão, peço licença para contar-lhes como cheguei até aqui e onde meus pés estão fincados, a partir da possibilidade de entender a minha maternidade como vocação. 

 

Quando decidi participar do Núcleo Interseccional em Estudos da Maternidade, NIEM, com a coluna: Maternidades: cordões de “úteros” diaspóricos, a ideia era tornar palpável o meu tema de doutoramento, no qual busco evidenciar como as escrevivências (EVARISTO, 2005a; 2007) presentes nos corpora escolhidos de Maya Angelou e Conceição Evaristo herdam um legado que pretendem fecundar uma nova travessia de interpretação sobre maternidades negras na literatura das Améfricas (GONZÁLEZ, 1988). Os desejos eram apresentar e divulgar a minha pesquisa, mas intuía que não era só isso, havia também um desejo de me autorizar, marcar a minha autoria e aceitar que não estou no plano de uma escrita acadêmica apenas, pois a minha pesquisa envolve uma responsabilidade de devolução de práticas ancestrais. Eu precisava acordar o que estava adormecido em mim, deixar a minha luz brilhar e reafirmar que eu encontrei o meu sol.

 

Dessa maneira, ao longo de cada texto entregue, além de uma enunciação de pesquisa, também busquei uma enunciação de pertença, tecendo uma escrita umedecida com as águas amnióticas da maternidade como projeto de vida, um divisor de águas para muitas mães pretas. Logo, o nome dessa coluna também nasce desse desejo de mostrar como a metodologia da minha tese é vida que pulsa, alimenta, cocria espaços outros de aleitamentos maternos de crianças, projetos, comunidades, e principalmente de mulheres pretas reencontrando o poder da autodefinição (COLLINS, 2019), o seu lugar no mundo. As palavras leite, líquido amniótico, bolsa, trompa, cordão umbilical, placenta, ovários, dentre outras, são fios metodológicos, os quais reafirmam o quanto o nosso corpo é um portal de passagem, mesmo quando tentam sequestrá-lo, ainda é possível paragens-passagens. Daí nascem as várias imagens de úteros que atravessam as maternidades de mulheres negras, as quais tenho lido como reencontros de cura. 

 

Na pujança e ressignificação dessas representações, no lugar da imposição do útero-depósito tem-se úteros cabeceira, nascente, alimento, sol, casa, encontro, dança, espelho e cabaça. E as águas sempre aparecem contornando os movimentos circulares de tempos ou(t)ros que não cabem nesses moldes ocidentais. Um voltar para casa com os nossos pés e com a força vital dos nossos ancestrais. 

 

Nesse movimentar palavras, em busca de autodefinição (COLLINS, 2019), as mães ancestrais me orientaram a pegar o espelho, a buscar a minha imagem entrelaçada as suas. Foi aí que eu vi, a minha menina querendo encontrar essas mulheres. Estávamos desejosas por brincar nas palhas de milho ou de café, correr pelos campos e pelas plantações de mandioca; rodar e cantarolar com os pássaros e ficar olhando para as nuvens imaginando coisas e sorrindo, vendo nossos sorrisos, curtindo e nos embrenhando neles. Sabe por que estou fazendo isso? Porque eu desejava e precisava construir outras imagens de humanidade de mães, longe da carga imposta por quem não nos conhece. Eu só consegui fazer isso, por entender a importância da construção de novas imagens, já que “é preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade […]” (NASCIMENTO, 1989). As mães ancestrais me constituíram e refletem em mim miragens de referências primeiras. 

 

Diante disso, narrar a minha escrevivência enquanto uma mãe preta foi e tem sido um gesto de expurgar uma série de traumas que atravessam o meu corpo. Um gesto de renascimento pela possibilidade de perceber coisas que não via, mas também de entender que a maternagem me constitui enquanto pessoa. Eu existo porque a maternagem me sustenta em tudo, desde as lutas diárias na terra quando trabalhava na roça, até hoje, quando materno minha filha, família, amiges, projetos e a mim mesma.  Por isso, a minha tese é uma escrita gestada-escrevivente porque eu fugi da senzala, criei o meu quilombo e estou lutando todos os dias pela minha liberdade e a dos meus irmãos e minhas irmãs. 

Engravidar, gestar, parir, maternar, nutrir, cocriar é um direito nosso, mas continuam nos roubando. A gente sabe qual ventre tem direito de parir, como a voz poética denuncia no poema “23 minutos” da escritora e intelectual Lívia Natália (2017, p. 63): “Quantas mães ainda vão chorar / vendo seus filhos / parido às avessas, / pelas armas do Estado?”. Dessa maneira, tenho colhido na minha escrita essas e outras questões que atravessam a vida de mães de filhos negros, como as “mães de maio” e as de Jacarezinho, para narrar, denunciar, o quanto esse sentimento de medo escancara a política de morte que vem ceifando vidas negras. Uma política que mata não apenas o jovem negro, mas também aniquila, extermina e fere sua mãe, seu pai, seus/uas irmãos/ãs, parentes e amigos/as, toda uma comunidade. Uma morte física e simbólica.

Estilhaçar foi o caminho que encontrei para me embalar, lavar as feridas em busca de desague em outros rios, lagos e mares decoloniais. Foi assim que gestei, pari e expelir para o mundo, “Dorato”:

 

Dorato 

 

Dora estava cansada, por isso pediu ao companheiro que colocasse água na bacia para dar banho em Inaê. Assim ele fez. 

Uma pergunta ecoava, desde que viu, na viela em que morava, um corpo negro alvejado no chão, como ser mãe em tempos de resistência e dor? Para que ter filhos negros? Para ver seus corpos expostos na televisão? Como ter filhos negros em um estado genocida?

Por um momento, pensou em sua mãe, nas referências primeiras de maternagens, mas também das suas ancestrais sequestradas de suas origens, mas também do direito de maternar, cuidar, cocriar 

Dora mastigando as dores, caminhou em direção a Inaê, tirou suas roupas e a levou ao banheiro. Percebeu que a bacia estava cheia de espumas e perguntou ao seu companheiro o que ele tinha colocado na água. O silêncio fez parte da resposta, o que a deixava sempre transtornada, a um passo do ato.

Dora segurou Inaê com uma das mãos e com a outra jorrou a água do banho, ali mesmo, expulsando naquelas águas-espumas os estilhaços de maternidade que persistiam em casar-lhe tanto mal-estar corporal. (MOREIRA, 2019, ainda não publicado)

 

Os estilhaços de maternidade que havia (e ainda existem outros) precisavam ser jorrados fora. Um gesto de movimentar as dores nas águas atlânticas como (re)encontro de espaços de cura e reconexões; (re)encontro de sinais de maternidades outras e possíveis para mulheres negras. Esses têm sido os meus desejos, porque a minha maternidade é projeto de vida, uma vocação soprada pela responsabilidade de construir outros legados para as mães ancestrais que se aninham em meu corpo. Por isso, convoco vocês, queridas irmãs de cor, a iniciarem para existir e ser afeto do que nos faltam. 

Um abraço e se cuidem.

 

REFERÊNCIAS:

 

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.

 

NATÁLIA, Lívia. 23 minutos. In: Sobejos do Mar. Salvador: Caramurê, 2017, p. 63.

Josinélia Chaves Moreira

Colunista
Salvador - Brasil

Josinélia Chaves Moreira é uma pesquisadora nascida em Barra do Choça, BA. Mãe de Janaína, graduada em Letras Vernãculas, Josinélia tambem e mestre e doutoranda em Literatura e cultura pela UFBA.

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