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Mãe docente e pesquisadora  - Desafios de uma tripla jornada. 

16.08.2021

Do espaço privado ao tão sonhado ingresso no ensino superior público
federal – o relato de uma estudante mãe

Erika Armond

Esse texto é um breve relato da minha trajetória pessoal, alguns desafios enfrentados por mim na universidade durante o curso de graduação em Pedagogia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Acreditando que essa história pode incentivar outras estudantes mães, como eu, a perceberem que a universidade também é lugar de mulheres com esse perfil. A inclusão, permanência efetiva em busca do sucesso acadêmico das estudantes mães no ensino superior brasileiro. A nossa militância é a nossa voz. Escrever é um ato de resistência.


Considero importante trazer essa escrita em primeira pessoa, para contar um pouco da minha trajetória desde quando vislumbrei o ingresso no ensino  superior brasileiro em uma instituição federal de ensino. Ainda me lembro dos olhares duvidosos da minha capacidade de realmente conseguir me tornar uma
estudante universitária, pois, de fato, eu já era mãe. Mãe da pequena Luisa, que na época não tinha completado nem 2 anos de idade eu era uma jovem mãe com 22 anos de idade. Era totalmente dependente financeiramente do meu companheiro e pai da minha filha, apenas ele mantinha um emprego formal e as
duras penas conseguia manter a casa.


O ano era 2010, eu vivia apenas para cuidar da minha filha e da casa.
Lembro de pensar sobre como seria o meu futuro e de não conseguir nem mesmo imaginar uma colocação no espaço público na qual poderia me encaixar.
Nada parecia ser possível, somente mesmo estar fadada ao espaço privado, dentro de casa, no âmbito familiar. Ao mesmo tempo, havia uma inquietação interna e, mesmo sem nenhum tipo de apoio, decidi me movimentar, tentar mudar o meu destino.

Do desejo à ação

Fiz a minha inscrição para realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), arrisquei-me, não tinha nada a perder. Já fazia cinco anos que eu não mantinha uma rotina regrada de estudos, mas o sonho de ingressar no ensino superior público sempre esteve dentro de mim. Corri atrás. Pedi isenção e
realizei as provas. Me surpreendi com as notas, em especial, a nota da Redação.

 

Escrever e ler sempre foram minhas paixões, apesar de sempre acreditar que não era capaz. Entretanto, de alguma forma, ter mantido o hábito da leitura me ajudou muito. Naquele momento acendeu uma luz de esperança que me fez acreditar que eu também era capaz, mesmo sendo mãe e estudante oriunda de
escola pública.

 

Finalmente recebi o tão esperado e-mail que me informava que eu tinha sido classificada para ingressar no curso de Pedagogia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O curso citado era o das duas opções de minha escolha no Sistema de Seleção Unificada (SISU). A UFRJ era a universidade mais sonhada, também pensada como inalcançável, eu acreditava que o sonho estava sendo realizado. De fato, em alguma medida, estava.


A inocência e a inexperiência me fizeram acreditar que o maior obstáculo tinha sido ultrapassado. Lembro-me de precisar de ajuda para ir ao campus da UFRJ localizado na Ilha do Fundão, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), pois nem mesmo dinheiro de passagem eu tinha. Meu pai, separado de minha mãe, me levou ao local de realização de matrícula, junto a minha mãe, que estava muito orgulhosa da minha conquista e da minha pequena filha Luisa.


A UFRJ disponibilizava aos alunos ingressantes e cotistas, uma bolsa de acesso e permanência. Essa já era uma de suas políticas de permanência de “novos estudantes” (HERINGUER, 2015), uma política de Assistência Estudantil.  
O ano da minha matrícula, 2012.1, era oriundo das recentes políticas implementadas no Brasil do processo de expansão, democratização e diversificação do ensino superior brasileiro. A partir desse processo de
ampliação do ensino superior, era fato que “novos estudantes” estariam chegando, ocupando os bancos universitários brasileiros. 


Ingenuidade acreditar que o maior e mais difícil desafio estaria superado?
Logo percebi que estava enganada. Não, esse definitivamente não era o desafio mais difícil. Logo após o ingresso e ao começar a frequentar o espaço acadêmico pude perceber que estava enganada. Mesmo tendo ingressado em um curso que historicamente é ocupado majoritariamente por mulheres e é um curso de
menor prestígio social, encontrei um público em que as/os sujeitos eram diferentes de mim, com um perfil diferente. Havia muitas mulheres jovens, de origem socioeconômica variada, porém poucas delas eram mães. Logo me senti deslocada.

 

Alain Coulon (2008) aponta em seus estudos sobre a dificuldade dos jovens ingressantes do ensino superior ao terem de se afiliar à cultura acadêmica. São muitas siglas, setores, salas diferentes, uma autonomia que esses estudantes precisam aprender a lidar neste nível de ensino, bem diferente
da experiência do ensino médio. Para alguém com o perfil como o meu, uma jovem mãe e dona de casa, além de toda essa dificuldade em me apropriar dessa cultura do ensino superior, da cultura acadêmica, havia mais um agravante, cumprir com os mesmos prazos e cobranças que os demais estudantes, porém,
sendo mãe também, não “apenas” mãe, mas dona de casa. Tratava-se de uma sobrecarga, isto é, uma tripla jornada. Conciliar meus estudos acadêmicos, com a maternidade e os cuidados com o lar fazia parte da minha rotina diária. 

                                                      A importância das redes de apoio


Os olhares e comentários das/os colegas de curso, por exemplo, eram recorrentes. Muitas das vezes eu era vista como incapaz por elas/eles, para desempenhar trabalhos em grupo, por exemplo. Sendo assim, consegui estabelecer uma relação mais forte com apenas duas colegas de curso, sensíveis à minha realidade, embora não fossem mães como eu. Essa foi uma das redes de apoio que me possibilitou uma forma de consegui prosseguir nos estudos acadêmicos.
 

Por ter de enfrentar condições adversas e que dificultavam minha permanência no ensino superior, tinha de me dedicar muito para não evadir da universidade. Também precisei contar com uma rede de apoio familiar para dar conta dos cuidados com a minha filha, contava com ajuda de outras mulheres
como minha mãe, sogra, tias e primas. Na minha rotina diária cheguei a pegar até oito conduções por dia para deixá-la na casa de alguma dessas familiares e, depois, seguir para a universidade. Na época residíamos na cidade de Niterói, no estado do RJ, e o campus que eu estudava ficava situado na zona sul do RJ, no bairro da Urca. As casas das parentes que acolhiam a minha filha ficavam situadas na região metropolitana do RJ, na cidade de São Gonçalo. Sendo assim, eu percorria até três municípios todos os dias para conseguir estudar, sempre na tentativa de impactar da menor forma possível a minha filha. É fato
que por muitas vezes eu não podia contar com essas mulheres que também tinham seus afazeres e que trabalham fora de suas casas e a única possibilidade era a de levá-la à universidade comigo.

 

Vale ressaltar que o pai da minha filha, na época, não entendia que também uma responsabilidade dele, o cuidado com a nossa filha. O local que ela ficaria para que “eu” pudesse estudar era uma preocupação somente minha.
Essa era uma “responsabilidade” minha. Ressalto também a importância do recebimento da bolsa de acesso e permanência que pude receber no primeiro ano de realização de curso que servia para pagar minhas passagens e custear algumas das necessidades da minha filha para que eu pudesse continuar
estudando.


Ao longo da minha graduação tive mais duas gestações, tendo me tornado mãe de três meninas, Luisa, Manuela e Isabela. Destaco como aspectos fundamentais para a conclusão do meu curso de graduação as redes de apoio, tanto a rede construída dentro da universidade e da rede de apoio familiar. Além
desse importante e fundamental aspecto, destaco também a importante política de Assistência Estudantil possibilitando o recebimento das bolsas que a priori foi a já mencionada Bolsa de Acesso e Permanência e que, após um ano de recebimento, foi convertida na bolsa de aspecto social denominada Bolsa
Auxílio, que mesmo sendo de um valor menor, continuou oportunizando a garantia de pagamento da minha passagem e a compra de fraldas para as minhas filhas, por exemplo.


Por diversas vezes escutei de alguns docentes da renomada instituição que estudava, que a quantia que as/os discentes recebiam era destinada a gastos exclusivamente com os estudos, tais como xerox, compra de livros etc., era claro a falta de preocupação ao contexto no qual as/os diferentes estudantes
estavam inseridas/os. Durante todo o curso, mesmo que em silêncio, os gastos de dinheiro da bolsa que eu recebia eram destinados às minhas maiores necessidades e que, em sua maioria, estavam ligadas às minhas filhas. Era do bem-estar delas que eu dependia para prosseguir com meus estudos. Somente
dessa forma era possível dar conta dos meus estudos acadêmicos, eu desenvolvia diferentes estratégias para conseguir estudar. Tirava fotos dos textos para efetuar a leitura, tentava concentrar as disciplinas em vários turnos no mesmo dia tendo então que ir um menor número de dias durante a semana,
dessa maneira eu conseguia economizava dinheiro de passagem, por exemplo.
Tais estratégias eram pensadas por mim.

 

A universidade ainda não pensava/olhava para as mães de forma mais específica. Não havia nenhum coletivo de mães na universidade, era cada uma por si só, no máximo criava-se uma pequena rede de apoio entre elas. Não havia uma mobilização coletiva, era como se cada uma de nós estivéssemos tentando
sobreviver. Sabíamos de muitas mulheres que acabavam trancando o curso e, até mesmo muitas vezes evadindo. A minha luta era diária, a cada período era preciso colocar minha cabeça para pensar quais seriam as estratégias do momento para prosseguir com os estudos.

 

 

(In)Conclusão


Inicio essa (in)conclusão com uma reflexão acerca da complexidade do processo vivido, acreditando ser muito importante registrar que entre os anos de 2012 e 2017 eu não tinha a real consciência do que estava vivendo. Eu sobrevivia, não pensava de forma clara que deveria tentar criar um movimento maior e problematizar mais as condições que vivenciava. Eu estava erra? Eu era mesmo tão inocente? Hoje, compreendo a importância dos coletivos, desta iniciativa do NIEM ( Núcleo Interseccional de Estudo da Maternidade), entendo que estar aqui relatando o que vivi é um ato de resistência, ter voz, ter consciência do vivido, ter a oportunidade de contar um pouco da minha história são aspectos que devem ser valorizados no protagonismo e na luta feminista.  Sigo acreditando que registrar um pouco do que vivi e por ter sim, de fato, concluído a minha tão sonhada graduação, de algum modo abriu portas para que outras estudantes mães que também são sobrecarregadas, entendam e acreditem que uma vez que nós conquistamos o direito de ingressar no ensino superior, esse também é um espaço nosso.


Assim como eu, muitas mulheres abriram essas portas antes de mim. A luta e a conquista delas pelo ingresso no ensino superior, nível este antes na história impensado para nós, deve ser valorizada e sabendo que mesmo estando no ano de 2021, ainda se configura como espaço de luta pelas estudantes mães.

 

 

 

Referências:

ARMOND. Erika Fonseca. PERMANÊNCIA NA UNIVERSIDADE PÚBLICA: ESTRATÉGIAS DE ALUNAS PARA LIDAR COM A QUESTÃO DO TEMPO. Monografia (Licenciatura em Pedagogia). Rio de Janeiro: CFCH/FE/UFRJ, 2017


ÁVILA, Rebeca. “Trajetórias e estratégias escolares de mulheres de camadas populares que vivenciam uma tríplice jornada diária: trabalho remunerado, trabalho doméstico e estudos”. Dissertação (Mestrado em Educação). São João Del Rei: UFSJ, 2010. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal2-
repositorio/File/mestradoeducacao/Dissertacao9RebecaContreraAvila.pdf>. Acesso em: 11 de agosto de 2017.


COULON. Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: Edufba, 2008.
HERINGER, Rosana (2015). O acesso ao curso de pedagogia da UFRJ: análise a partir dos ingressantes em 2011-2012. In: HONORATO, G & HERINGER, R. ACESSO E SUCESSO NO ENSINO SUPERIOR: uma sociologia dos estudantes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

Em breve

Erika Armond

Colunista
Aracaju - Brasil

Erika Fonseca Armond é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Especialista em Inclusão em Educação, pela UFRJ, Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e integrante do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Educação Brasilera -NEPHEB.

 

Atua como Professora Regente do Ensino Fundamental 1; Integrante do Coletivo de Mães e Gestantes da Unirio – Colodanda; Mãe da Luisa, da Manuela e da Isabela. 

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