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Autora-Data

30.03.2021

O DISPOSITIVO MATERNO

Juliana Márcia

Quando eu tinha 10 anos, depois de muito brincar de boneca, recebi a notícia que minha mãe estava gestando meu irmão mais novo. Eu estava em êxtase, sonhava em ter um bebê de verdade dentro de casa e ainda de brinde era um irmão pra eu cuidar. Hoje olho pra trás e ainda me impressiono! Como é possível uma menina de 10 anos sentir tanta alegria ao se imaginar cuidando de outra pessoa?

Cresci, passei a adolescência e o início da adultez sempre considerando “será que eu posso sair pra fazer isso? E se ele precisar de mim?”. Ele nem sempre era o meu irmão, as vezes era meu namorado, meu amigo, meu colega, minha família, etc. Talvez por isso tenha escolhido abandonar meu amor pela informática e tecnologia para fazer serviço social, pois aprendi que esse era o meu lugar, o lugar o cuidado. Durante esses anos tive meus relacionamentos e eu estava sempre ali, pra cozinhar, pra passar uma roupa, pra resolver um problema, emprestar um dinheiro e até cortar cabelo e fazer barba. Havia um sentimento de prazer em me sentir útil por cuidar.

Aos 25 percebi que teria que sair de casa pra fazer um doutorado em minha área. Dormia chorando só de pensar em ter que contar isso pra alguém, em pensar no julgamento de ser chamada de egoísta por “abandonar” meu irmão aos cuidados de toda a rede familiar na idade em que eu mesma já cuidava dele. A dor do rompimento com o ambiente do lar ainda não cicatrizou e o medo do julgamento ainda me apavora. Hoje aos 27 anos, no meio de uma pandemia e morando em Niterói junto com meu namorado, toda uma trajetória inserida no cuidado mostra agora sua eficiência. Ele, que nunca precisou cuidar, não sabe  como se inserir no serviço da casa. Eu, que sempre cuidei, faço por nós dois, pois me sinto egoísta em me negar a fazer, injusta por exigir que ele faça e com medo de ser julgada por dizer “não”. Me regozijo quando ele elogia a comida, mas o cansaço físico e a sensação de fracasso pelo artigo que eu não consegui terminar seguem me nocauteando. Será que compensa ser a rainha do lar?

Todo esse relato que trago aqui é pra introduzir uma importante discussão sobre o elemento que me levou a um processo de auto análise (ao mesmo tempo sofrido e recompensador): o dispositivo materno. No capítulo “Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a Psicologia” do livro “Aborto e (não) desejo de maternidade(s), a psicóloga Valeska Zanello aborda como a maternidade foi construída ao longo dos anos, com fortes contribuições das ciências psis, como a grande meta de realização da vida das mulheres. Tais contribuições deram verniz científico à maternidade, que mesmo que tenha seus códigos e obrigações socialmente construídas passaram a ser internalizadas como uma questão natural e até mesmo instintiva, o tal “instinto materno”.

A autora explica também qual o papel das tecnologias de gênero e os dispositivos de subjetivação, responsáveis por produzir a ideia de que a mulher alcança plenitude ao obter o amor (dispositivo amoroso) e a maternidade (dispositivo materno). Nesse sentido, uma importante abordagem que a autora faz é apontar que o dispositivo materno atinge tanto as mulheres que são mães, quanto aquelas que não são e contribui também para legitimar o lugar da mulher como principal (ou única) responsável pelas atividades do cuidado:

[...] Assim, as mulheres se culpam, quando mães, por cuidarem demais, por cuidarem de menos, por não cuidarem. Culpam-se também por não desejarem ser mães, quando descobrem uma gravidez; por se arrependerem de ter tido um filho (apesar de muitas vezes amá-lo, ambivalência); por não se disponibilizarem a cuidar dos outros. Esse último é um aspecto importante, pois, ainda que uma mulher não tenha seus próprios filhos, ela é vista como naturalmente cuidadora (capaz de “maternar”), podendo e devendo empregar esse “dom” no cuidado de outras pessoas: dos pais, irmãos, sobrinhos, doentes da família, etc. Além disso, esse “cuidado” se desdobra em uma naturalização dos cuidados domésticos, cabendo a elas, também, em grande parte, até hoje, os serviços de casa44. Uma mulher que não priorize o cuidado com os outros (filhos, marido, família), geralmente é julgada como egoísta, fálica e outros termos que, no uso, adquirem um caráter pejorativo. (ZANELLO, 2016, p.114)

 

Zanello, aponta como nós, mulheres, somos treinadas desde a infância para ocupar esse lugar do cuidado, do materno e do amoroso, tendo nas bonecas e panelinhas importantes ferramentas para treinar meninas para a maternidade e o cuidado.

A autora denuncia o papel especial que a psicologia desenvolve para produção e legitimação da maternidade romântica e até mesmo na transformação do não desejo de maternidade ou da não realização da mãe em uma patologia, o que contribui diretamente para a produção da culpa materna.

Sendo assim, para aquelas que desejam refletir sobre maternidade e ciência, tecnologias de gênero, maternidade e não maternidade, aspectos psicológicos da maternidade e da subjetivação feminina, a leitura deste material é indispensável.

A Valeska esteve conosco em uma das lives do NIEM discutindo carreira e maternidade. Como poder assistir no link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=cgW6s1y7t-U

 

Se interessou? O capítulo mencionado pode ser facilmente encontrado na nossa Biblioteca. Aproveite a leitura!

https://www.nucleoniem.com.br/bibliotecaonline

Juliana Márcia
Colunista
Bahia - Brasil

Área de formação: Serviço social (Graduação), Mulheres, gênero e feminismos (mestrado), Serviço Social (Doutorado)

Principais pesquisas ( caso tenha): maternidade e carreira, maternidade e formação, gênero e universidade, gênero nas ciências, assistência estudantil para mães e relações raciais na Universidade

Coletivos, gts, ong ou organizações que participam: Pesquisadora do Núcleo Interseccional de Estudos Sobre a Maternidade - NIEM, do grupo de pesquisa Ciência, gênero e educação - CIGE e do Grupo de Pesquisa de Ações Afirmativas e Reconhecimento - GPAAR.

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