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Mulheres em Maternância

06.09.2021

Maternagem, inclusão e possibilidades

Débora Reis

Nossas experiências nos atravessam de modo potente a todo instante, nos afetando e nos proporcionando ressignificar nossas formas de olhar, de sentir e de (re)fazer a nossa própria existência. Olhar para os sentidos que construímos e desconstruímos a cada interação com o outro, com o mundo e com a gente mesmo, se constitui em possibilidade de aprendizagem para cada um de nós.


Ao olharmos atentamente para os sentidos que construímos a respeito das diferenças, ao longo do tempo, podemos vislumbrar as formas pelas quais tal elemento foi percebido, sentido, distorcido e/ou reproduzido dentro de uma ideia rigidamente concebida através das experiências, historicamente.
 

Não sabemos lidar com as diferenças, nossas experiências nos revelam. A dificuldade das instituições escolares, por exemplo, ao lidarem de forma complexa com uma sala de aula diversa, reflete nossa dificuldade em olhar
para o outro e nos perceber nele. Ao nosso apressado e superficial olhar, parece tão difícil! Algo muito distante, quase uma utopia. Mas, como pode ser isso, se a diferença representa um elemento que nos compõe enquanto
humanos? Em que momento perdemos a capacidade de crescer e nos construir enquanto seres diversos, passando a nos classificar, hierarquizar, julgar, discriminar, condenar e pautar nossas decisões em pressupostos
excludentes?


Os contextos histórico-sociais, políticos e culturais nos contam muito sobre como as visões sobre as diferenças e, especificamente, o olhar para a pessoa com deficiência foi, ao longo do tempo, sendo forjada no bojo dos
paradigmas desenhados pelos padrões hegemônicos, onde, entre os muitos pressupostos ideológicos de “perfeição” ancora-se a normalidade.

 

Pergunta difícil de ser respondida, no entanto, seria essa: Mas, o que significa ser “normal”? Ora, para que exista a normalidade tem que haver o contraponto, afinal, as coisas são entendidas na visão da universalidade
através dos binarismos (homem/mulher; bom/mau; mente/corpo; 
positivo/negativo) o que, dessa forma, delimita a existência do anormal, concepções tais que limitam nossas perspectivas de mundo, logo, reduzem os
sentidos que construímos a partir de nossas vivências.


Para o considerado “anormal” restou a margem, já que sobre esse recai as imperfeições, incapacidade, limitações (como se as limitações não se referissem a um mundo estruturado para os padronizados), o constrangimento,
o silêncio, a incoerência, a infelicidade, a ausência de direito sobre o próprio corpo, a desvalorização.

 

Quando um dos meus filhos recebeu o diagnóstico de autismo, depois de longa caminhada pela busca do diagnóstico (isso porque se trata de uma família com o mínimo de acesso à saúde, então, se considerarmos que para a maioria das famílias brasileiras que vivem em condições de vulnerabilidade social, a saga do diagnóstico é muito, mas, muito penoso, cansativo e frustrante, enxergamos o enorme problema que isso representa) percebi o quanto estávamos atravessados por complexidades que sequer tínhamos ideia do quanto eram difíceis.
 

Depois dos anos de busca pelo diagnóstico percebi que chegar àquela resposta representava um fim, assim como também um começo. Sabíamos que as características do Gabriel agregavam-se sim em um diagnóstico e que
seria muito importante para ele o conhecimento de si mesmo, entretanto, sinceramente, eu não alcançava, lá em 2013, o quanto de aprendizagem isso implicaria para todos nós.

 

Começava a partir daquele momento uma luta contra a discriminação, contra o capacitismo e contra o desrespeito de uma sociedade adoecida pela ideia da normalidade e pela ideia da perfeição. Um adoecimento que ancora muitas posturas nos mais variados espaços e que se constituiu em uma dificuldade para que eu, especificamente, pudesse enxergar e perceber que teria que lutar contra aquilo que era considerado por muita gente como...normal.
 

Houve quem dissesse que meu filho poderia jamais conseguir concluir os estudos, ou que teria muita dificuldade em se comunicar, jamais viajaria sozinho e sua autonomia seria limitada. Me foi ensinado prever a vida dele,

lógico, perspectivando que sempre teria dificuldades em tudo e para tudo. E a capacidade dele, onde estava sendo considerada na visão dessas pessoas? O movimento dele enquanto ser humano aprendente, não deveria ser
considerado?


Acreditei, em primeiro momento. Afinal, eu não conhecia o território no qual estava pisando, dessa forma, o jeito era ouvir e seguir os passos de quem me parecia ser coerente no assunto e eu, então, estaria consciente de que Gabriel sempre necessitaria de mim ou de meu suporte. Só que não foi assim.


Eu entendi, durante esse caminho, que as coisas mudam, se ajustam, se movimentam e que previsões são uma tentativa quase sempre inútil de controlar tudo. Desisti de prever e reaprendi a viver. A cada dia, sem a pressa
do amanhã ou a prisão do passado.

 

Poderia sim ser diferente e meu filho necessitar de suportes mais estruturados, assim como tantas pessoas com necessidades específicas, mas, a diferença é que passamos a ver as coisas como estavam acontecendo e não
através das previsões. Então nos permitimos às experiências.


A partir do momento em que enxerguei no meu filho um ser humano em todo o seu potencial (em algum momento depois do diagnóstico eu não o via assim), longe das lentes do capacitismo e do ideal da normalidade, eu permiti a ele uma vida autônoma, baseada no respeito à pessoa que ele é. No momento em que compreendi suas características como pertencentes a ele e que a ele era garantido o direito de vivenciá-las e entendê-las eu também estava reconfigurando o delineamento que o dispositivo diferença marcava em nossas vivências. E isso afetou minha vida de modo muito marcante.


Percebi que minhas perspectivas de mundo estiveram durante muito tempo limitadas aos padrões universais, que não me permitiam experienciar todas as possibilidades de pensar as relações humanas, as relações com o
mundo. Dessa forma, foi possível abraçar plenamente o significado da diversidade e acordar para o fato de que é possível estabelecer possibilidades de ação no enfrentamento ao preconceito, à discriminação, às posturas de
exclusão e aos movimentos que impulsionam pessoas ao estado de sujeição.

O diferente somos todos nós. A diferença nos caracteriza e ao mesmo tempo nos enriquece. É essa diversidade que nos coloca em lugares de questionamento, reconstrução de ideias, reconfiguração de crenças, compreensão de pensamentos e posturas, assim como resistência perante conceitos universais.


Não conseguiremos agir pela inclusão sem respeitar a existência da diferença como parte de cada um de nós. Não aprendemos todos da mesma forma, não sentimos da mesma forma, não experenciamos a vida do mesmo
jeito. E são esses elementos que nos potencializam enquanto devir humano.

 

Tanto para Gabriel assim também como em relação aos meus outros filhos, procuro viabilizar oportunidades de autoconhecimento e autoaceitação, para que compreendam a ausência da necessidade de atender padrões, mas
que, aceitando-se e respeitando-se poderão fazer o mesmo em relação ao outro. Respeito e consciência coletiva.
As pessoas com deficiência são rotineiramente tratadas como se necessitassem de caridade ou compaixão, pela ideia distorcida de que sejam incompletas, o que determinaria um sentimento de que suas existências
precisassem de autorização, já que não se constitui no esperado, ou seja, uma vida possível. Ocorre que não há padrão de vidas possíveis.


Penso que fazer parte dessa família a qual pertenço me ofereceu possibilidades de perceber o quanto o dispositivo família é, na verdade, algo muito mais amplo. É o outro que ressoa em mim. Que afeta a vida do meu filho e que a vida dele ressoa no mundo. E assim com todas as pessoas. Sejam elas quem sejam e como sejam. Que todos possam ser e terem garantido o seu direito à dignidade de ser quem são.


Cada vida é uma possibilidade em seu potencial. E por mais difícil que seja visualizar as várias camadas que precisamos remover para fraturar paradigmas excludentes, que estão impregnados até a raiz de nossa
composição enquanto seres culturais, é preciso ver que estamos caminhando, ainda que, em alguns momentos, muito devagar e, em outros, até mesmo regredimos, entretanto, estamos em ação, ainda que com cansaço ou dor, a 
gente não se entrega e resiste na possibilidade do sorriso. Vamos às possibilidades do esperançar em movimento!

Colunista

Débora Reis

Aracaju - Brasil

Débora Reis é mãe de quatro filhos, graduada em Pedagogia pela UFS e pós graduanda em psicopedagogia clínica e institucional.

Atualmente é membra dos Grupos de pesquisa Núpita, do GPECS ( Educação, Cultura e Subjetividades), ambos da UFS e participa do Coletivo de mulheres flores de maria Bonita, do curso de pedagogia da UFS.

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