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Mulheres em Maternância

06.08.2021

Os sentidos do ser mulher e mãe no contexto da pandemia de COVID-19, a partir das narrativas de mães universitárias.

Débora Reis

A história das mulheres durante muito tempo foi escrita pelos homens. A sociedade patriarcal estabeleceu os modos de ser, se comportar, pensar, agir e até mesmo as características do amor feminino, demarcando paradigmas que foram através do tempo sendo equivocadamente percebidos como naturais e sutilmente incorporados como valores universais. 

Dessa forma, as mulheres vêm lutando pelas desconstruções desses paradigmas para que possam viver a liberdade de suas escolhas, o poder sobre seus corpos e a oportunidade de experienciar suas vivências de forma ampla.  

 

O contexto implantado pela pandemia de SARS-CoV-2 vem revelando as faces cruéis dos impactos dos papéis de gênero sobre a vida das mulheres, sobretudo das mães,  já que principalmente é sobre elas que recai a responsabilidade do cuidado pelos outros, dos serviços domésticos, da manutenção estrutural familiar e de estabelecer ligações entre todos esses fatores e sua vida pessoal.

Como membro do Coletivo de mulheres do curso de Pedagogia da UFS e como estudante mãe trabalhadora, ainda em 2020 passei a observar, escutar e acolher as narrativas de colegas do curso que vivenciavam situações complexas as quais enfrentam as mulheres mães para permanecerem na graduação, dificuldades essas acirradas pelo atual contexto.

Esse texto compõe-se das minhas narrativas, em um recorte da minha pesquisa relacionado ao contexto da pandemia, diante das experiências que vivi ao escutá-las e de transcrever suas experiências que compuseram meu trabalho de conclusão do curso, onde busquei contribuir para o enfrentamento sobre os elementos que impactam negativamente o cotidiano dessas estudantes mães, influenciando suas representações sobre ser mulher e mãe, assim como suas subjetividades.

 

Medo, insegurança, rupturas, interrupções e adaptação brusca às mudanças estabelecidas formam esse nosso contexto atual complexificado pela problemática da pandemia. Considerando o ambiente acadêmico, no qual as aulas presenciais também sofreram interrupção, uma série de demandas se evidenciaram.

 

Trazendo especificamente a partir de agora minha experiência enquanto estudante de graduação e mãe, ao início do ano de 2020, mais especificamente mês de março, me encontrava finalizando o nono período do curso, fazendo seis disciplinas e realizando atividades como monitora, além de um estágio em instituição que realiza acompanhamento educacional à crianças em situação de vulnerabilidade social. Além disso, as atividades relacionadas ao Coletivo de Mulheres do curso era algo que se realizava em pleno desenvolvimento.

 

A partir das interrupções que se sucederam, tornou-se necessário lidar com a realidade de compor diversos ambientes dentro do espaço de nossa casa, além, dos esforços para acompanhar tantos acontecimentos que se estabeleceram rapidamente por meio das novas formas de vivenciar as relações, de interagir, de trabalhar, de estudar, de cuidar de si e dos outros.

 

Era momento de colocar em prática, em meio a todos esses eventos, o planejamento do trabalho de conclusão de curso, porém, percebi a necessidade de repensar o tema, por conta das condições de isolamento social. Nesse momento, ao conversar com uma grande amiga que conduziria um estudo sobre maternagem através das narrativas de professoras das redes municipal e estadual de ensino, percebi a possibilidade e a importância de investigar o cotidiano das alunas mães do curso de Pedagogia da UFS, até porque, o acesso a essas alunas estaria muito mais ao meu alcance por conta das atividades do Coletivo de Mulheres, permitindo que fosse possível esse contato, além claro, de perceber que essa pauta permanecia a margem das principais discussões desenvolvidas na universidade, mesmo considerando um curso formado majoritariamente por mulheres e no qual, muitos casos de trancamento e abandono de disciplinas se encontram como sujeitos alunas que são mães.

O retorno das colegas de curso à proposta foi bastante positivo, o que demonstrou o despertar do interesse das alunas por discutir o assunto.  A partir de então, passamos a etapa de organizar nossos encontros virtuais, algo que envolveu empenho e boa vontade dessas alunas mães considerando o complexo cotidiano de demandas característico de suas vidas, condição exacerbada durante a pandemia.

Esse momento de ouvir sobre suas experiências e os sentidos atribuídos a maternagem externado através de suas vivências, seus desafios, estratégias desenvolvidas no âmbito familiar e acadêmico, emoções, interações e sonhos permitiu revelar pontos importantes a serem analisados, questionados e sentidos.

 

As reuniões virtuais se revelaram um espaço leve de trocas, pois, ao me colocar a escuta, me permiti também acolher suas experiências e suas emoções. Um movimento de respeito, paciência e admiração, que muito demonstrou de mim mesma, fazendo de cada encontro uma reconfiguração de minha própria maternagem.

Mas os nossos encontros também se configuraram em um território para lidar com a dor. Desemprego, cansaço, incertezas, instabilidades emocionais, sobrecargas, tristezas. Colegas que encontravam muita dificuldade para acompanhar aulas remotas. A conclusão da graduação se desenhando em uma realidade distante. Ao ouvi-las, um reencontro com minhas vivências.

 

Narrar sobre si mesma e sobre suas experiências, mais do que tudo possibilitou às minhas colegas de curso que vivem as intensidades da maternagem que ousa estar na universidade, momentos de rever a si mesmas, de reconstruir determinados momentos, (des) encontros, sentidos e sentires, o vivido e o não vivido, repensando decisões e principalmente, se permitindo ressignificar experiências através desse resgate.

 

Percebi e senti cada gesto, pausa, sorriso, dúvida, breve silêncio, reconsideração. Recebi com muita alegria e honra cada movimento feito e refeito de se colocar à disposição para falar de si e de seu maternar. Vi nisso um gesto de força e senso crítico, pois o ambiente universitário costuma ser hostil em relação às pessoas que não se encaixam no modelo padrão homogêneo de aluno perfeito. Porém, elas estavam ali, rompendo com paradigmas que colaboram com a alimentação de estruturas excludentes. E estavam falando sobre isso, atendendo a esse chamado para expressar a todos o que é ser uma mulher mãe universitária.

 

Penso que o maternar se constitui em um dispositivo que pode ser pensado também como ponto de resistência sendo que, a cada dia mais esclarece-se a importância em desenvolvermos estudos e pesquisas a respeito, visibilizando o tema. Tecer saberes tecendo laços, construir conhecimento destruindo certezas absolutas. Conhecer os contextos e desbravar as subjetividades. Repensar o maternar de forma coletiva.

 

Nos ensinaram sentidos sobre o ser mãe que nos enclausuraram em limites que, na maioria das vezes obstruíram nossas possibilidades. Nos mantendo no silêncio da culpa, da vergonha, da sensação de ter que dar conta de tudo para atender ao modelo de “boa mãe” que ainda povoa o imaginário social, a maternagem invisível. A que nada expressa, a não ser o amor incondicional, a devoção e a não priorização de si mesma. Que para além disso, fora dessas fronteiras, torna-se um problema, um desconforto.

Por essas alunas mães, por todas as mulheres mães, as pedagogas que estarão acompanhando seus alunos e trabalhando as diferenças em sala de aula, aquelas que desenvolvem suas tarefas em casa e que são extremamente desvalorizadas, também por mulheres que não desejam maternar. Vamos ousar subverter ideias e práticas universais de sujeição. Vamos abraçar as possibilidades de sermos quem somos, do jeito que queremos, de forma dinâmica, leve e afetuosa, respeitosa em relação ao outro e ao mundo, expandindo fronteiras e nos permitindo perspectivar uma existência plena. 

Colunista

Débora Reis

Aracaju - Brasil

Débora Reis é mãe de quatro filhos, graduada em Pedagogia pela UFS, pós graduanda em psicopedagogia clínica e institucional e mestranda no programa de pós-graduaçao em Educação de Universidade Federal de Sergipe.

Atualmente é membra dos Grupos de pesquisa Núpita, do GPECS ( Educação, Cultura e Subjetividades), ambos da UFS e participa do Coletivo de mulheres flores de maria Bonita, do curso de pedagogia da UFS.

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