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Mulheres em Maternância

06.11.2021

Maternância atípica: confrontando o capacitismo

Débora Reis

A partir do ano de 2013 compreendi que eu representava (também) uma mãe atípica. Por quais razões tal termo? Foi o ano em que um dos meus filhos recebeu o diagnóstico de autismo, dessa forma, como ele passou a ser percebido como pessoa atípica, eu como sua mãe então, era uma mãe atípica.
 

Na verdade já me percebia atípica em vários sentidos e por vários motivos, pois que algumas coisas nessa existência me são demasiadamente indigestas e sem sentido, o que já rendeu e ainda renderá muitas reflexões, escritas e expressividades.


Quando me aproximei do campo dos estudos sobre humanidades era isso que eu buscava. Compreensões. Achei-as. E também me encontrei com infinitas perguntas. E entendi que viver é isso mesmo. Caso a gente pare de perguntar ou de se indignar ou de se disponibilizar para as possibilidades, aí sim,estaríamos apenas (sobre) vivendo. A vida é um movimento que nos solicita bem mais.


Após o entendimento do termo “atípico” no contexto de família de pessoa com deficiência, busquei  aproximação com a compreensão sobre como a pessoa com deficiência caminhou através dos tempos, pisando nesse território áspero e hostil revestido pelos estigmas impostos por uma sociedade “especialista” em não aceitar, não reconhecer e não saber lidar com o fato de que somos maiores e transbordamos das fronteiras dos padrões.


Se foi instituído o ser “normal” (dentro das expectativas, perfeito, capaz, feliz) também surgiu o ser “anormal” (diferente de tudo o que se espera, defeituoso, incapaz, infeliz). Tudo o que se encontra para além dessa linha limítrofe do padrão hegemônico universal (homem, branco, cis, hetero, cristão,
ocidental, sem deficiência e rico) constitui para sociedade uma existência problemática, incômoda, digna de compaixão, indigna de ser valorizada, invisível, silenciada.

 

Nós, as famílias atípicas, ouvimos coisas como: “ele/a é tão bonito/a,nem parece...” ou então “tão inteligente e esperto/a, vai superar e vencer!”.
Mais dessas falas são coisas do tipo: “você é uma guerreira, a escolhida para 
lidar com esse fardo”. Se eu fizesse uma lista do que já ouvimos, eu, meu filho e nossa família, além do que nos chega trazido por outras pessoas com deficiência e suas famílias, escreveria folhas e folhas aqui.
 

Já houve coordenador de escola dizendo que meu filho era vítima daquilo que ele chamava de “brincadeira sem graça” (entenda-se violência) por ser “ingênuo” e desse modo, as outras crianças o enganavam, desrespeitavam e o marginalizavam. Um profissional da educação estava dizendo, então, que aquela criança era responsável pelo que lhe acontecia e eu seria também responsável, por mantê-lo ali. Basicamente, era isso. Aquela instituição não era lugar para ele (o diferente).
 

Algo diferente do que se vê hoje com as tentativas de retrocesso, inclusive com ministro da educação ressaltando que pessoa com deficiência na sala de aula atrapalha os demais alunos, porque não conseguem acompanhar os “normais”? Algo diferente daquela família que não entrega o convite de aniversário para aquele colega que tem necessidades específicas? É diferente daquele responsável que se preocupa com o filho/a que tá no parquinho quando percebe que uma criança com deficiência tá brincando ali?
 

Pessoas com deficiência historicamente são considerados sem voz.
Porque ao se comunicarem e expressarem sua presença, sua possibilidade de estar e ser feliz no mundo, incomodam. Não sabemos lidar com o fato de que alguém fora dos “padrões” de perfeição pode não só apenas existir e fazer parte da comunidade, como ser essencial para essa comunidade, sendo capaz,
produtivo, ativo e...feliz. Dá um nó na cabeça encaixotada do povo que acredita em gente “normal”.

 

Tanto as pessoas com deficiência quanto as famílias muito vêm contribuindo para desmistificar os estigmas e os preconceitos decorrentes desses modelos sociais de exclusão. Lutas constantes por direitos e políticas
públicas que abarquem um longo abismo de marginalização ao qual por muito tempo foram vítimas e ainda são obrigados a estarem alertas, porque o tempo todo tem alguém regressando aos ideais de segregação, assim como era nas épocas não tão distantes onde pessoas com deficiência eram separadas em um quarto e amarradas, mantidas escondidas, enviadas aos manicômios (por 
representarem suposta vergonha à família), compreendidas como resultado de “castigo divino” ou ainda “manifestação do mal”.
 

As correntes ainda estão por aí, em muitos lugares e sendo resgatadas pelas pessoas que mais têm dificuldade em se enxergar no outro e perceber seu reflexo, ou seja, sua condição vulnerável. E ao mesmo tempo, sua força.
São correntes profundamente enraizadas através de um sistema que é capacitista, misógino, patriarcal, cisheteronormativo e racista.


Maternar dentro desse sistema equivocado que nos desabilita de viver plenamente nossas experiências constitui-se em enorme desafio. As verdades universais que recaem em forma de exigências sobre as mulheres que são mães despencam em cascatas enquadrando-as como “boas mães” ou negligentes.
 

Sobre aquelas que maternam filhos/as com deficiência, primeiramente, como já dito anteriormente, determina-se o título de “guerreira” e destinatária de uma sofrida e honrosa missão, um destino. A essa mulher é designado dedicação total (como observado para todas que são mães), entretanto, nesse
caso, a exigência apresenta-se mais robusta, a dedicação é eterna e ininterrupta, já que se conclui que esse filho/a será incapaz de cuidar da própria vida (perceba-se que para os pais o critério não é tão inflexível). Será que o abandono de pais em relação a filhos com deficiência causa tanto espanto e
indignação mesmo?

 

Dizem que “instinto” é “natural” de MÃE. Cuidar é “natural”, abdicar da própria vida é “natural”. Errar não está na lista das possibilidades de mulheres que são mães, sob pena de serem absurdamente desqualificadas. Pensar em si mesmas? Segundo os critérios da “boa mãe” está fora de questão.
 

Mães de pessoas com deficiência por vezes são responsabilizadas pela condição dos filhos. São muitas vezes responsabilizadas se os filhos não apresentarem progresso em seu desenvolvimento. São levadas a comparar-se com outras mães, comparando os progressos ou regressos dos filhos.
 

Instituições escolares induzem ao equívoco de que a responsabilidade da decisão sobre um filho estar na escola especial ou na regular é só de suas responsáveis (na maioria das vezes, as mulheres) sendo que na verdade, muitas instituições pautam-se em discursos e práticas que só disfarçam-se de inclusão, mas na verdade esforçam-se profundamente para ter aquele aluno bem longe dali.
 

Tem muita mãe pressionada. Sem políticas públicas que estejam atentas à saúde e educação de seus filhos que apresentam necessidades específicas. Para acessar a escola regular parece que é um favor. Para permanecer é desgastante, a sensação é de que se está incomodando, sobrando, cansando desde os funcionários até o diretor. Instituições que já caminham em um território consistente de inclusão, ou que não caem nas armadilhas da exclusão, precisam caminhar junto a essas mães ou cuidadoras o tempo todo em muitos casos, até porque, o tempo todo, seus filhos têm seus direitos ameaçados.
 

E com isso tudo, mães que têm filhos com deficiência precisam criá-los para que se autoconheçam, se reconheçam enquanto seres humanos capazes e cheios de possibilidades e tenham o máximo de autonomia.

Digam isso aos nossos corpos cansados de tanto lutar contra preconceito e discriminação.


Sim, o negócio é complexo demais. Como não ter medo do menino sofrer nesses espaços cheios de gente preconceituosa? Medo. Insegurança. Vontade de proteger pra sempre. Os princípios do cuidar materno abnegado se contrapõem à necessidade de criar e orientar para o viver pleno no mundo.
 

Aprendi e aprendo demais sobre diversidade, deficiência e sobre autismo, com autistas. Lutam muito, na vida, na causa, no mundo. Por direitos, por justiça, por equidade. Muitas mães partilham dessas trocas de
conhecimento e de vivências também, inclusive, mulheres mães que adquiriram a consciência de que, o melhor para seus filhos, é cada vez mais se tornarem indispensáveis a eles, no sentido de buscarem sua autonomia, sua força, seus talentos, suas possibilidades, suas decisões enfrentarem (tendo o apoio que precisam) seus desafios, tristezas, obstáculos e vitórias.


E para todas as mulheres que são mães, consciência de que a maternagem não se constitui no fio condutor de suas vidas e se libertem para suas próprias possibilidades. Isso é uma luta e um constante movimento de

busca de si mesma, dentro de uma sociedade que impõe exatamente o contrário. Ser mãe atípica tem me ensinado que jamais fui típica em absolutamente nada. Pode ser que a maternância atípica se constitua em um processo que desestrutura o que se afirma como “certeza” e “verdade” possibilitando a visualização das linhas de fuga que permitem o ser humano descobrir que pode (e deve) se libertar das amarras chamadas de “padrão”. Vamos correr pelas marginais?

Colunista

Débora Reis

Aracaju - Brasil

Débora Reis é mãe de quatro filhos, graduada em Pedagogia pela UFS e pós graduanda em psicopedagogia clínica e institucional.

Atualmente é membra dos Grupos de pesquisa Núpita, do GPECS ( Educação, Cultura e Subjetividades), ambos da UFS e participa do Coletivo de mulheres flores de maria Bonita, do curso de pedagogia da UFS.

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