top of page

Amor líquido

28.08.2021

A cultura do desmame.

Ludmilla Torraca

A cultura do desmame.


A complexidade estrutural que estamos inseridas, o patriarcado, o machismo e a justiça brasileira nos empurram para a alienação. A informação é o poder que não podemos ter, o poder de escolha. Porém, ser mulher e mãe nos coloca em uma posição de vulnerabilidade, e a criança de invisibilidade. Se tratando de amamentação a mulher está em um lugar que o masculino não alcança, representa um viés  de empoderamento que reúne as mais poderosas forças no universo biológico: a manutenção da vida e a manutenção da espécie. Amamentar é um ato político, um ato feminista.

 

Embora a amamentação seja reconhecida pelos órgãos de saúde como um efetivo investimento para o desenvolvimento social e econômico, a história tem nos mostrado que o ato de amamentar se trata de uma decisão tomada pela mulher, de forma consciente, embora essa conscientização seja negada. Desconstruir valores/significados que estão arraigados é complexo e demorado, porque são valores que hoje não servem ou não são aceitos, mas que fizeram parte da vida de outrora. O resgate histórico é fundamental para compreendermos essa prática.

 

Na década de 70, devido à falta de incentivo ao aleitamento materno pelos pediatras , o índice de aleitamento materno no Brasil era muito baixo, havia também propagandas não éticas de substitutos do leite materno, com grande venda desses produtos, e distribuição gratuita de leite em pó pelo governo. Dados do Ministério da Saúde apontam que os índices de aleitamento materno estão aumentando no Brasil. De acordo com resultados preliminares do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Ernani), no primeiro ano de vida a taxa de aleitamento materno no Brasil é de 53%. Entre as menores de seis meses o índice de amamentação exclusiva é de 45,7%. Já nas menores de quatro meses, de 60%.

Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) a média de amamentação exclusiva, quando o bebê ingere somente leite materno, é de apenas 54 dias, o equivalente a menos de dois meses, sendo o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), endossada pelo Ministério da Saúde do Brasil, 180 dias ou seis meses, podendo ir até dois anos ou mais de forma complementar.  

 

Ainda carregamos o peso do Brasil colônia, onde a amamentação era considerada indigna para uma dama, as amarras de uma sociedade construída sob a insuficiência da mulher, como podemos revisitar ao pesquisar nas propagandas relacionadas a alimentação infantil por volta da década de 40 onde o Leite condensado ou leite moça era comercializado para complementar  o leite materno.

 

A propaganda dizia: “O Leite Condensado marca Moça pode ser usado na falta ou insuficiência do leite materno, por sua composição constante e fácil digestão. Lembre-se, dando-o a seu filho, da confiança que inspira um alimento que tem ajudado a criar, sãs e robustas, milhões e milhões de crianças em todo o mundo”. 

 

Bom, qualquer semelhança é mera coincidência.

Hoje temos a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância - Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL) - um conjunto de normas que regulam a promoção comercial e a rotulagem de alimentos e produtos destinados a recém-nascidos e crianças de até três anos de idade, como leites, papinhas, chupetas e mamadeiras. Porém estudos têm relacionado o  descumprimento da Lei e segundo pesquisadores e especialistas isso se deve, dentre outros motivos, à falta de implementação de fiscalização sistemática da Norma, além do baixo grau de conhecimento pela população, estabelecimentos comerciais, profissionais de saúde e mães.

 

Meninas crescem acalmando suas bonecas com chupetas e mamadeiras. Nas mídias é indissociável a imagem de um bebê a esses apetrechos. Não questionamos pois não fomos ensinadas sobre a fisiologia dos nossos corpos, sobre a imaturidades dos bebês, que somos os únicos mamíferos que nascem dependentes das mães e muito menos sobre o tamanho do estômago dos recém nascidos, sobre o puerpério e sobre a descida do leite. Não chega até as mães que a necessidade de sucção é neural, que a sucção não nutritiva é extremamente importante para o sucesso da amamentação. Em vez de apoio e oferta de serviços para a mãe poder ficar com a cria, se oferta um pedaço de plástico para a criança chupar. Nunca será só uma chupeta, apesar de saciar a necessidade de sucção promover acalento, as consequências podem não ser imediatas, vão desde o desmame precoce causado pela confusão de bico até alterações na postura, fala, sistema respiratórios, deformações esqueléticas na boca, na face e má oclusão dentária.

Não existe no mercado bicos anatomicamente comparáveis ao bico do seio. A chupeta não é menos nociva que chupar dedo, o dedo fica na mesma posição anatômica que o mamilo dentro da boca. E na maioria dos casos, se a criança passou da fase oral e permanecesse com o dedo na boca foi possivelmente uma necessidade de sucção não atendida. Nada substitui o ato de mamar no peito, além da nutrição e imunológico, deve ser levado em conta os aspectos emocionais e afetivos. Assim como nada se compara ao leite materno, nenhuma fórmula, da melhor marca, não consegue abarcar a complexidade do leite materno, lembrando que  ele é um alimento vivo que se modifica de acordo com as necessidades e idades do bebê.

 

Embora o leite humano e a prática de amamentar sejam o melhor, muitas crianças são desmamadas precocemente e alimentadas com substitutos do leite materno com a utilização de mamadeiras. A substituição dessa prática natural representa importante fonte de lucros para produtores e distribuidores desses produtos. Assim, uma eficiente promoção comercial utilizando técnicas de marketing abusivas é atitude que necessita ser controlada também pelos responsáveis pela Saúde Pública, utilizando-se de educação, vigilância sanitária e monitoramento.

 

Amamentar não é fácil. Criou-se um imaginário onde amamentar é instintivo e não é. Apesar de ser natural, temos que aprender a aleitar e o bebe aprender a sugar, e para isso é preciso apoio. Pensando em apoiar o aleitamento materno, nesse ano de 2021,  a campanha do Agosto Dourado vem com o tema "Proteger a amamentação: uma responsabilidade de todos.” Trazendo para toda a sociedade a responsabilidade de garantir que as mulheres amamentem e as crianças sejam amamentadas, pois não é isso que vemos nos tempos atuais.

 

Seja por falta de informação, falta de assistência especializada e atualizada ou rede de apoio, a culpa sempre recai sobre a mulher, apesar de NUNCA ser dela. E sim, em sua grande maioria é a indústria a responsável pela condução que a alimentação no Brasil toma, a indústria controla os corpos e mentes, através da mídia e da cultura, seguimos padrões há anos sem questionar, no imaginário popular quem nunca desconfiou se “apenas o leite da mãe estava sendo suficiente”, quem nunca se questionou por que o leite da vaca nunca perde as propriedades e o leite da mulher “vira água”.

 

É secular a depreciação da mulher que amamenta. Há muito anos designada “amas de leite”, as mulheres negras ainda hoje vivem a desclassificação social e a sexualização dos corpos maternos. Em junho de 2021 vivenciamos a necessidade de um projeto de lei para garantir que o aleitamento materno é direito das mães e das crianças, exercido livremente em espaços públicos e privados de uso coletivo, vedado qualquer tipo de constrangimento, repressão ou restrição ao seu exercício.

 

No século XX com o trabalho externo da mulher e o descobrimento da fórmula do leite em pó, ao invés de valorização e reconhecimento, se estabeleceu a jornada profissional e a doméstica, a carga horária duplicada, triplicada, porém a remuneração não acompanhou o crescimento exponencial. Fomos acostumadas com a sobrecarga e a culpa. Fomos acostumadas a não ser suficientes e então  como ser o único alimento de um ser. Fomos acostumadas a não ter escolhas e direitos, e até hoje não temos direito a amamentar e assim como não temos direito a escolher não amamentar, querem que nosso corpo seja direito deles.

 

Fomos ensinadas que não daríamos conta ao invés de sermos amparadas. Há milhões de mães solos, mães sem rede de apoio, mães desempregadas e invisibilizadas. A falta de interesse e investimento nas mulheres, na maternidade e nas crianças é sistêmica. A constante exigência capitalista por produtividade exclui as mães, afinal, não dá pra gerar renda enquanto se gera um filho, depois de parir, acredita que a produção feminina não mantém o mesmo ritmo. Culturalmente a mulher é a única responsável por aquela criança o que a deixa vulnerável a absenteísmos e queda de produtividade. 

 

A partir do momento que a mulher entende a cultura que está inserida ela pode escolher continuar nela ou não, a maternidade não é uma regra e nem deve ser romantizada, hoje vemos caixinhas e protocolos que se a mulher não se enquadra ela é julgada, cancelada. A maternidade nem sempre sai como planejada e está tudo bem, é aprendida no processo, “é errando que se aprende”. O melhor dos mundos é que a mãe encontre uma rede de apoio que queira as mesmas coisas que ela, que seja a maternidade que ela quer se espelhar, encontre apoio da família, do pai para dividir a carga e de outras mulheres que a levantem, pois apesar de cada maternagem ser única, cada mulher e cada filho serem únicos, nada como ter com quem contar.


 

Referências :

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. A legislação e o marketing de produtos que interferem na amamentação: um guia para o profissional de saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2009.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Departamento de Promoção da Saúde. – Brasília : Ministério da Saúde, 2019.

 

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança : aleitamento materno e alimentação complementar / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – 2. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2015. 184 p. : il. – (Cadernos de Atenção Básica ; n. 23). 2019.

JURUENA, Gabrielle Seidl e MALFRATT,I, Carlos Ricardo Maneck. A história de aleitamento materno: dos povos primitivos até a atualidade. Elfdeporte, Buenos Aires, año 13, n° 129, Fevereiro de 2009. Disponível em: https://www.efdeportes.com/efd129/a-historia-do-aleitamento-materno.htm Acesso em Agosto 2021 

REA, M F. Os benefícios da amamentação para a saúde da mulher. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 80, n. 5, 2004.

 

WORLD ALLIANCE FOR BREASTFEEDING ACTION (WABA) Empoderar mães e pais para favorecer a amamentação: Hoje e para o futuro. Penang, *Site da WABA*, ago. 2019. Disponível em: http://www.ibfan.org.br/site/wp-content/uploads/2019/07/1-SMAM_folder_port_2019_final.pdf Acesso em Agosto de 2021. 

Em breve

Ludmilla Torraca

Colunista
Brasil

Ludmilla Torraca é mãe da pequena Sol,  de 2 anos e 9 meses. Graduada no curso de licenciatura em Enfermagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Especializada em Saúde da Família e Comunidade pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Ludmilla é uma Defensora o Sistema Único de Saúde (SUS), pois acredita que a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas e deve ser assegurado com qualidade pelo Estado. Atualmente Ludmilla atua como Consultora em amamentação. 

bottom of page