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Edição Especial NIEM

20.11.2021

Maternidade e a revisão dos papéis sociais

Maternidade e a revisão dos papéis sociais

Maternidade e a revisão dos papéis sociais

EDIÇÃO ESPECIAL - NIEM
NOVEMBRO NEGRO

Maternidade negra & (A)Típica.

Gisele Camilo da Mata
Licenciada em Historia - UNFEMM
Graduada em Processos Gerenciais - UEMG
Especialista em Gestão Pública - UEMG
Mestranda em Educação e Docência - PROMESTRE/FaE/UFMG

Gisa Camilo
Colunista NIEM

 

A maternidade é coisa engraçada (às vezes), nos faz observar, ouvir e refletir sobre coisas que passavam despercebidas. Dia desses estava pensando sobre uma mensagem que vi nas redes sociais, era uma conversa entre Charlie Brown e seu cachorro Snoopy, personagens de desenho animado infantil. Nessa conversa Charlie Brown disse:

 - Um dia, nós vamos morrer, Snoopy. E a resposta do Snoopy, cheia de maturidade:

 - Sim, mas todos os outros dias, a gente vai viver.

 

Essa afirmação parece ser algo lógico, ainda assim somente quando, visceralmente, essas palavras fazem sentido podemos absorvê-las em sua profundidade. Afirmo então, a partir da minha experiência no parto que teve também quatro dias em coma no - temido - Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Ao experienciarmos esse momento em que a vida escapa e perdemos a consciência, caso tenhamos a chance de despertar, compreendemos a vida de forma distinta. E isso não é um jargão ou força de expressão é antes de tudo literal, é um relato sincero. Estranhamente (talvez nem tanto) esse não é um relato de quase morte, mas uma forte tentativa de chamar atenção para as cores, sabores, cheiros e valores, aqui empregado com o sentido daquilo que nos é mais importante, viver.

 

Sim, a minha gravidez, minha maternidade foi e é uma vivência transformadora, sobretudo desde o parto. Como disse, entrei em coma logo após o parto. Foram quatro dias desacordada até que despertei e conheci meus gêmeos, Eleonora e Bartolomeu. Essa é parte imensamente boa, mas a parte que não é tão boa é que passei a integrar a estatística de mulheres, sobretudo mulheres negras que passam nesse momento por um evento traumático – 1 a cada 4 mulheres no Brasil - violência obstétrica.

 

Em 2019 quando houve a tentativa de retirada desse termo relacionando-o aos diversos tipos de agressões que as mulheres vivenciam nos procedimentos médicos, seja no pré-natal, parto ou pós-parto fui convidada para uma entrevista no Programa Mistura Fina da Rede Minas TV. Nessa entrevista, relato um pouco sobre o que foi essa experiência principalmente para reforçar e apoiar a manutenção do termo como forma de expressão da verdade e pela não invisibilização de mais um atravessamento que intersecciona e mantém além dos aspectos, os discursos sociais, culturais e políticos da nossa sociedade. Por se tratar de gravidez múltipla já representa fator de risco, o que implica acompanhamento mais cuidadoso da obstetrícia e sua equipe, principalmente no momento do parto. Isso é o que me foi dito como um mantra durante o pré-natal. No entanto, em nenhum momento o risco real das complicações, inclusive óbito, me foi explicado para que pudesse haver um preparo, inclusive de quem iria me acompanhar durante o parto, no caso a minha mãe.

 

Mesmo optando pelo parto normal essa possibilidade foi excluída e a cesárea foi realizada com a justificativa que os dois bebês estavam em apresentação pélvica, o que quer dizer que estavam “sentados”. Fato é que após a primeira bebê nascer, no caso Eleonora, o segundo bebê, Bartolomeu não havia rompido a bolsa e foi retirado envolto completamente por ela. Mais tarde soube que ele havia engolido líquido amniótico e foi necessário ficar em observação, porém sem necessidade do uso de antibióticos ou quaisquer outros cuidados de emergência. Mas, obviamente essa questão também foi ponto de preocupação e maior cuidado durante o puerpério e primeiro ano de vida deles.

 

Voltando à violência obstétrica, o parto aconteceu e fui para sala de pré-parto. Após o que me pareceu dez minutos de espera comecei a mostrar sinais de desconforto e mal estar, e sangramento. Esses sinais evoluíram gradativamente e rapidamente – justamente essa complicação é o que me foi dito de forma tão fútil e sem maiores explicações durante as consultas de pré-natal - que exigiram o uso de protocolos, ao todo são sete tipos de medicamentos distintos para conter o sangramento que ocorreu. Quando o último medicamento - inserido no ânus - não deu certo foi preciso retornar ao bloco cirúrgico e reabrir o local da cirurgia. Isso quer dizer que fiz duas cirurgias no mesmo dia. E isso teve várias implicações posteriores, inclusive a cicatriz que teve uma “quelóide” – quando os pontos arrebentam e inflamam - no processo de cura.

Esse é um desconforto diário com o qual preciso lidar e que é também lembrança constante do ocorrido. A questão principal é que todos esses procedimentos e riscos não foram compartilhados com minha mãe, que era quem me acompanhava. Então, na cirurgia, os médicos decidiram que o único jeito para evitar minha morte era fazer uma histerectomia – procedimento de retirada do útero – e o fizeram sem o entendimento e consentimento da minha família.

 

Mesmo a gravidez não sendo planejada e hoje vivenciada como maternagem solo, meus filhos me trouxeram força e novo significado pra vida. Não estou aqui romantizando a maternidade e menos ainda a experiência que passei, de fato quero explicitar com meu exemplo porque a frase do desenho me chamou tanta atenção. Os gêmeos nasceram em maio de 2015 e hoje estão com seis anos. Contudo, em 2017 quando completaram dois anos de idade tive outra surpresa nessa caminhada, o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista do meu filho. De lá pra cá tem sido muitas formações em diversas áreas para compreender um pouco o que é essa neurodiversidade e como posso ajudá-lo em seu desenvolvimento, ao mesmo tempo que observo, acompanho e contribuo igualmente para o desenvolvimento da minha filha.

 

Porém, não apenas sigo atenta aos aspectos de desenvolvimento de linguagem, comunicação e interação social, como provejo uma educação antirracista, feminista, anticapacitista. E esse tem sido outro grande desafio porque superar diariamente as barreiras sociais dos diversos marcadores sociais de diferença, sobretudo raça, classe, gênero e a visão normatizadora e capacitista sobre quais pessoas são consideradas produtivas, não é tarefa para amadores nesse país que vivemos. Além disso, nos obriga a ter firmes posicionamentos frente à vida.

 

Vivemos hoje no Brasil, um cenário de retrocesso social, econômico e político. Intensificou-se práticas conservadoras, negacionismo, perda de direitos arduamente conquistados, terceirização, sucessivos ataques e tentativas de desmonte da saúde e da educação, e o mais vil de todos os comportamentos o genocídio de milhares de pessoas ao não fornecer a vacina contra um vírus letal que provocou uma pandemia mundial. Lamentavelmente, essas ações ainda se amparam na redução do sofrimento alheio ao que se popularizou chamar, mimimi. Não entrarei nesse último debate, mas o trouxe à cena por considerar essa mais uma cruel dinâmica social que coloca os marginalizados ainda mais à margem. A pandemia também escancarou diversas questões, dentre as mais evidentes estão o aumento expressivo das violências contra as mulheres e a sobrecarga das mulheres em relação ao cuidado. 

 

A reflexão que fiz sobre a resposta, madura, do Snoopy ao Charlie Brown diz respeito exatamente a todas essas vivências silenciosas e silenciadas, anônimas e muitas vezes apagadas da maternidade. Que podem ir desde a gestação, parto e primeiros anos de vida dos bebês. Certamente, “viver todos os outros dias” não está ligado apenas à maternidade, mas por ser essa a lupa que aqui estabeleci o diálogo posso afirmar que o peso e reconhecimento da expressão que um dia todos vamos morrer tornou tangível de uma forma muito mais densa e intensa, estar viva todos os dias.

  E assim sair do coma e algum tempo depois de retornar pra casa encontro nos meus diários a frase que me acompanha desde a adolescência e que agora tem muito mais significado pra mim: “Quero viver e realizar um ideal”.

 Coletiva Pachamamá

 por Karla Maria

Coletiva  Pachamamá

por  Geysianne Felipe

Novembro Negro  por  Gisele  Camilo

Gisa Camilo

Colunista convidada
Brasil

Gisele Camilo da Mata é professora, filha da Camila e mãe dos gêmeos Eleonora e Bartolomeu. Mestranda em Educação e Docência na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Embaixadora Parent in Science na UFMG.

Atua como Analista Universitário na Reitoria da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Especialista em Gestão Pública com formação em Processos Gerenciais Ênfase em Gestão de Organização do Terceiro Setor e História.

Eu não existo sem você - poema de Vinícius de Moraes

"Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham pra você...

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